O blogojornalismo pró-direitos humanos é a ferramenta prática que encontrei para debater direitos humanos; interpelar e vigiar as autoridades estatais, especialmente no que diz respeito ao cumprimento do direito (inter)nacional dos direitos humanos e na implementação das políticas públicas e trazer reflexão contextualizada sobre Moçambique. Começo este ano, 2014, a debater direitos humanos, a partir de uma perspectiva dos africanos bantu. A isso chamo de direitos bantu-cosmopolitas...
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Manuel de Araújo: Ignorância de deputados sobre direitos humanos é assustadora
O deputado moçambicano Manuel de Araújo denunciou, em entrevista exclusiva concedida ao bantulândia, o que qualifica de “ignorância e fraca preparação em direitos humanos dos deputados que compõem a Assembléia da República (AR)”. Araújo, que já trabalhou na Amnistia Internacional, diz que dos 15 membros da Comissão de Relações Internacionais da AR, da qual faz parte, mais de metade não tem a mínima idéia do que sejam relações internacionais e direitos
humanos. Num outro quadro correspondente, o deputado aponta algum tipo de circunlóquios governamentais e subterfúgios parlamentares que concorrem para o atraso de ratificação de instrumentos internacionais de direitos humanos, a exemplo do Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional. Siga a entrevista abaixo...
Bantulândia – Este blogue tem percebido que o parlamento moçambicano não tem critérios e prioridade máxima de propor, legislar e ratificar instrumentos (inter)nacionais de direitos humanos.
- O que motiva esse comportamento na Assembléia da República?Manuel de Araújo (MA) - A Constituição da República de Moçambique e o regimento da Assembléia da República (AR) conferem ao deputado a prerrogativa de apresentar propostas de Lei. Contudo, o actual figurino da AR retira, na prática, essa prerrogativa aos deputados de bancadas minoritárias, porque as comissões especializadas são constituídas com base na proporcionalidade. Ou seja, por causa desse critério, todos os assuntos a serem discutidos devem ser aprovados pelo voto da bancada maioritária, constituído pelo partido Frelimo! Quer dizer, se a bancada maioritária não tiver interesse ou for manietada pelo Executivo, então, as propostas da oposição minoritária jamais serão discutidas em sede de comissão. Isto acontece mesmo nas comissões presididas pela oposição, que são os casos das comissões, designadamente Relações Internacionais, Defesa, Segurança e Ordem Pública e Assuntos Económicos.
Bantulândia - Que outros factores favorecem para as fracas propostas legislativas em direitos humanos?
MA ... Outro aspecto é a ignorância e a fraca preparação em direitos humanos dos deputados que compõem a AR e em particular as comissões. Só para dar um exemplo, dos 15 membros da Comissão de Relações Internacionais, mais de metade não tem a mínima idéia do que sejam relações internacionais e direitos humanos! E mais: não há acções enérgicas de formação dos deputados, muito menos de capacitação. Até parece que tudo é feito de propósito, para que a comissão não exerça o seu papel de monitoria e supervisão de actividades do governo numa área sensível de governação, a área externa que engloba as actividades do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Plano e Desenvolvimento, Finanças, Interior, Migração, fronteiras, Justica, Meio Ambiente e mais. Estou convencido de que o Governo e uma parte da presidência da AR não estejam interessados em ter uma Comissão de Relações Internacionais forte, capaz e competente!
Também posso colocar que o problema material é um dos empecilhos que a comissão enfrenta.
Bantulândia – Que problema material...?MA – Bom, depois de ter apontado algum tipo de fechamento da bancada maioritária e ignorância generalizada de deputados, para propor, legislar e ratificar instrumentos (inter)nacionais de direitos humanos, posso apontar o recurso material como terceira razão. O orçamento da Comissão de Relações Internacionais, a título de exemplo, só serve para efectuar duas viagens a igual número de fronteiras! E, nos cinco anos, esse foi o único trabalho visível que a comissão fez no terreno: Macarretane. Visitar a fronteira de Goba ou de Milange, ou de Tete e Chicualacuala; e visitar o centro de refugiados de Macarretane. Lembro-me de ter sugerido, numa das sessões, que a Comissão de Relações Internacionais deveria chamar-se Comissão de Fronteiras e Refugiados. Veja que o único país visitado por metade da Comissão foi a China. E sabe porquê? Porque os chineses pagaram! O outro país que se iria visitar era Cuba!
Bantulândia – Como deputado, que propostas já avançou para a ratificação de instrumentos internacionais de direitos humanos?MA - (...) A primeira tarefa que propus, na reunião da Comissão de Relações Internacionais, foi o levantamento das convenções de direitos humanos de que Moçambique faz parte (ou não) e aquelas que tínhamos que assinar e ou ratificar durante o mandato. Até hoje, não temos tal lista. Segunda proposta que apresentei: fazer visitas de cortesia às representações diplomáticas. Sabe a quantas os meus colegas foram? Uma. E sabe qual foi? Cuba!
Bantulândia - Que fez para cumprir seu dever de deputado?
MA - Por todos esses acontecimentos, verifiquei que, ao nível da comissão, não iria a lado algum; pelo que decidi usar da minha prerrogativa de deputado, para, a título individual, contactar as representações diplomáticas e efectuar o trabalho que achava que deveria ser feito! E que não poderia estar ali, naquela casa, eleito pelo povo, fingindo que estava a exercer a minha função de deputado, quando vivia amordaçado pelo voto da maioria! Foi assim que consegui integrar-me, a título individual, em organizações internacionais como o “Parliamentarians for Global Action”, com sede em Nova York, “Parliamentarians Against Nuclear Proliferation”, “Fórum Parlamentar sobre Armas Pequenas e Ligeiras”; neste último, entrei como simples membro, e logo fui eleito para o corpo directivo e mais tarde eleito vice-presidente.
Bantulandia - Qual é o nível de conhecimento e debate de direitos humanos no parlamento moçambicano?MA - Quase nulo. Não sei se a culpa é dos partidos ou da sociedade em geral. Mas o nível de ignorância sobre direitos humanos, na nossa Assembleia da República, é assustador. E digo-lhe mais, quando entrei estava preparado para encontrar alguma falta de preparação dos deputados quanto à compreensão de direitos humanos, mas a que encontrei assustou-me! E não estou a falar somente da bancada da oposição. A ignorância e a falta de preparação se estendem, para a nossa desgraça, à bancada do partido no Poder!
Bantulandia - Qual é o nível de fiscalização do parlamento moçambicano ao Executivo, no que tange à implementação de direitos humanos?MA - Zero!
Estatuto de RomaBantulândia – Que pode dizer sobre a não ratificação do Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional...MA – A não ratificação do Estatuto de Roma pode ser por ignorância, desleixo ou, então, medo.
Explico-me. Durante os cinco anos em que estive na Comissão de Relações Internacionais, trabalhei em vários temas: Questão do Zimbabwe, Tribunal Penal Internacional, Armas Ligeiras e de Pequeno Porte, entre outras. Muitos deles, a título individual, pois nesse aspecto nem a minha bancada nem a maioritária mostravam interesse. Se tiver espaço, poderei dar-te mais exemplos...
Bantulândia – Pode, sim, dar outros exemplos...MA – Vou falar da questão do Tribunal Penal Internacional. Moçambique assinou o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, no ano 2000. Volvidos nove anos, este estatuto ainda não foi ratificado (Moçambique não faz parte dele). Como mandam as regras, e usando as prerrogativas que são conferidas aos deputados, marquei um encontro de trabalhos com a ex-ministra dos Negócios Estrangeiros, Alcinda Abreu, para perceber por que é que Moçambique volvidos, na altura, cinco anos, não tinha submetido à AR os Estatutos de Roma para a respectiva ratificação. Recebi a resposta que indicava que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação já tinha preparado o dossier; contudo, tinha encalhado no Ministério da Justiça (tudo isto no mandato do presidente Guebuza, 2004-2009).
Acto contínuo, marquei uma audiência, com a então ministra da Justiça, Esperança Machavele. Na audiência, ela afirmou haver incompatibilidades entre a nossa Constituição e o estatuto.
Não sendo especialista na matéria, usei dos meus contactos internos e internacionais para obter assessoria jurídica. Especialistas da matéria indicaram-me que o problema levantado pela ministra da Justiça não era real, dando razão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Tive informações segundo as quais alguns países, como o Brasil, haviam resolvido o equívoco, de forma muito simples! Por isso, a juíza do Tribunal Penal Internacional veio a Maputo, ano passado, para partilhar a experiência do Brasil e de outros vários países na solução da aparente contradição entre os Estatutos de Roma e as suas Constituições...
Bantulândia – Como deputado, que caminhos tentou abrir, para a possível ratificação?MA - Em 2007, organizei, em Nova York, um encontro entre o Director dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação e um especialista na matéria para troca de pontos de vista, com vista à solução do caso. Quando esperava por um avanço na direcção certa, eis que o presidente da República, Armando Guebuza, substitui as duas ministras, nomeando para seus lugares Benvinda Levi (ministra da Justiça) e Oldemiro Baloi (ministro dos Negócios Estrangeiros).
Mesmo assim, prossegui, com os contactos. Marquei, então, uma audiência com Oldemiro Baloi. No encontro, Baloi foi muito cortês. Confessou que não estava a par do assunto, mandou chamar o respectivo técnico responsável pela área e este na minha presença reiterou o que acabei de contar!
O ministro indigitou o técnico para entrar em contacto com a sua contraparte no Ministério da Justiça, com o objectivo de harmonizarem o dossier. Foram dados dez dias para que o funcionário reportasse o assunto ao ministro. E que, por sua vez, o ministro me manteria informado dos progressos.
Acto contínuo, marquei um encontro com a então nova ministra da Justiça, Benvinda Levi. Apesar da mudança de ministra, a posição do Ministério da Justiça não tinha mudado.
Sobre este assunto, consultei vários juristas como o presidente da Comissão dos Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e Legalidade, Ossumane Aly Dauto, e o embaixador de Moçambique na Suécia, Pedro Comissário, só para mencionar alguns.
...Estamos nesse ping-pong. E já estamos no final do mandato. Infelizmente, a posição do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação é diametralmente oposta à do Ministério da Justiça. Apesar das insistências, nunca mais recebi o prometido contacto, e como o ministro Baloi responde pelos Negócios Estrangeiros e Cooperação está sempre fora do país...
Imprensa e AR
Bantulândia – Mudando de assunto, qual é a relação entre a Imprensa moçambicana e a AR?MA - A nossa Imprensa tem feito um mau trabalho! Passa a vida a falar mal do parlamento e dos deputados ao invés de se aproximar e perceber os problemas que a nossa AR enfrenta. Os jornalistas deveriam eles mesmos educar-se sobre questões parlamentares antes de atacarem uma coisa que não conhecem! Vão pelo lado mais fácil. Vi ainda esta semana um documento ou exortação em que se questionava a razão de um deputado possuir uma viatura. Esse nível de ignorância é grave! E os jornalistas devem desempenhar o seu papel, educando-se para educar a sociedade sobre a importância das suas próprias instituições! Com este andar, não me surpreenderia ver daqui a 10–15 anos o Presidente Guebuza, já no seu terceiro ou quarto mandato se transformar em Primeiro Ministro (como fez Putin), mandar fazer um referendo sobre a abolição da Assembleia da Republica! E que muita gente se esquece que Hitler foi eleito democraticamente; e democraticamente foi retirando bloco a bloco os alicerces da democracia!
Foto: noticias.pt.msn.com
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