quinta-feira, 9 de julho de 2009

Direito de fixar residência: um panfleto constitucional ilusório?

Muitos leitores deste artigo terão lido, nalgum momento, a Constituição da República de Moçambique, ainda que diagonalmente. E, certamente, terão se interessado pelo ponto 1º do artigo 55º que institui o direito de os cidadãos fixarem residência em qualquer parte do território nacional.


Minha intenção, aqui e agora, é cogitar sobre a não efectividade desse legado de fixar residência no território moçambicano. Entretanto, não entrarei em pormenores jurídicos, sob pena de ser achado ridículo e ignorante do que realmente não duvido desconhecer. Porém, a cidadania de expressão e de imprensa impõe que interpele e indague o porquê das macromazelas residenciais em Moçambique.

Estado social e o direito de fixar residência
Então, o que pressupõe o direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional? O que é uma residência? Haverá infra-estruturas sociais, económicas, culturais e políticas para a fixação de residência? O que significa qualquer ponto do território nacional? Se os cidadãos têm o direito de fixar residência, quem, então, tem a obrigação de criar condições sociais e políticas públicas para materializar esse direito?

Posso começar por dizer que o direito de as pessoas fixarem residência em qualquer parte do território nacional exprime pressupostos vários. Apresento apenas dois. Primeiro, a existência do Estado social em todo o território moçambicano. Segundo, a existência do Estado cumpridor do dever de criar condições e políticas públicas de residência urbana ou rural.

O Estado social se funda na base da multifacetada instituição de direitos de cidadania social, investindo o máximo dos seus recursos e talentos, para responder materialmente aos anseios dos direitos dos seus nacionais. Na verdade, o Estado social se desdobra não só na satisfação dos direitos de cidadania social; mas também direitos ligados à cidadania económica, política, cultural e espiritual. Por assim dizer, o direito de fixar residência clama pela garantia desses direitos das pessoas.

Então, o que clama o direito de fixar residência? Simplesmente isto: políticas públicas para residência digna em espaços parcelados e urbanizados. A exequibilidade dessas políticas públicas para o cumprimento palpável do direito de fixar residência poderá concorrer para que lembremos que uma moradia digna é acompanhada e rodeada de arruamentos asfaltados, escolas, segurança alimentar, unidades sanitárias, creches, água canalizada, electricidade, postos de trabalho, sistemas de transporte e comunicação, casas bancário-creditícias (aqui, cogito a necessidade imperiosa de estabelecimentos de créditos bonificados para habitação, criados pelo sector habitacional do Estado), lojas e mercados económicos, convivência política, liberdade de expressão e de imprensa, segurança, salas de cinema e artísticas, livrarias, jardins públicos, lazer, espaços verdes, entre outros direitos de cidadania política, económica, social, cultural e espiritual. Não consigo pensar e focalizar a fixação de uma residência ou área habitacional digna, sem estar rodeada de completude de cidadania política, económica, social, cultural e espiritual.

Na inexistência básica de infra-estruturas e direitos de cidadania já apontados, o artigo constitucional será apenas uma justificativa formal e um panfleto jurídico-constitucional ilusório, sem uma efectividade possibilitada por acções concretas do Estado, resumidas em planos exequíveis de políticas públicas e direitos humanos.

Simplesmente o seguinte: Se como cidadãos temos o direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional, significa que os operadores (seniores) da máquina estatal moçambicana têm de ter colocado e facilitado serviços públicos e privados em qualquer parte do território nacional condições sociais e políticas públicas de uma vida digna para os cidadãos lá morarem ou aqueles que por circunstâncias várias queiram viver nesse ponto. Discutir “qualquer parte do território nacional” torna-se meio enganoso, tendo em conta os quase 900.000 Km2 da extensão do nosso território. Talvez a melhor colocação fosse em partes escolhidas pelo Estado e sociedade civil, desde que comunidades rurais e tradicionais não saíssem prejudicadas pela política habitacional; pelo contrário tivessem benefícios disso.

Reparem que o legislador moçambicano, ao colocar o referido artigo sem exigir dos operadores da máquina estatal a materialização do direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional, está simplesmente a ser cúmplice da negligência no cumprimento das obrigações do Poder Executivo.

O Fundo de Fomento à Habitação é o exemplo mais revelador de quão cúmplice é o nosso Parlamento, por aprovar orçamentos e leis sobre serviços e direitos habitacionais sem, contudo, exigir a prestação de contas de andamento daquela instituição do Estado. Qual é o resultado disso? O FFH está ao serviço da arrogância e corrupção feudal dos operadores seniores e juvenis da máquina estatal. Assim, o FFH desvirtualizou os seus objectivos de se constituir em uma alternativa social viável para habitação infraestruturada de baixo e médio custo, tendo em conta o bolso dos beneficiários. Aliás, bem recentemente, lendo a Imprensa moçambicana, percebi que o FFH acaba de ser extinto, pela sua magna inoperacionalidade. Quem foi e será responsabilizado pela negligência e inoperacionalidade do mesmo?

O exemplo de habitação em Maputo O território urbano e suburbano de Maputo faz fronteira com o de Matola e Marracuene. Matola e Marracuene têm vindo a conhecer um crescimento populacional acelerado dado à fixação de residências por pessoas que maioritariamente moravam em Maputo-cidade. Ora, os novos bairros destinados para residência na Matola e Marracuene não têm o mínimo de condições de transporte e comunicações, unidades sanitárias, postos de trabalho, água canalizada, energia eléctrica, creches, escolas de nível secundário, técnico-profissional até ao superior, bibliotecas, centros artísticos e culturais e mais, salvo raras e honrosas excepções. Nestas condições tem sido muito difícil que os cidadãos se fixem nestes bairros. Fixando-se ou não, o direito de fixar residência é violada quando no lugar em que moramos não haja condições mínimas de residência cidadã. Residência cidadã é rodeada de cidadania social, cultural, económica, política e espiritual. Reparem que, em todo território nacional, os governos de Moçambique, desde 1975, ainda não se guindaram pela política pública e direito humano à fixação de residência cidadã massificada, o que, em si, é contraproducente aos seus objectivos, plasmados na Constituição.

Pessoalmente, conheço o Município da Matola e o distrito de Marracuene. Há dezenas de bairros isolados. Isolados porque não há estradas asfaltadas que liguem uns bairros de outros; não há transporte colectivo digno, circulando carrinhas de caixa aberta; não há postos de trabalho; desestruturação económica e social e a miséria e a exclusão social são os cartões de visita; educação escolar de baixa qualidade; postos de saúde distando 30 km um do outro; sem energia eléctrica, água canalizada, centros infantários, segurança e mais. Com todos estes marasmos, por que o artigo constitucional continua?

Actualmente, Moçambique vive o fenómeno família urbana alargada um pouco por todas cidades do país. Milhares de jovens, já com idade para casamento ou já casados, continuam a viver em residências de pais ou nos quartos arrendados, por causa de factores arrolados supra e infra-mencionados.

Pontapé de saída
Já estamos com 19 anos da Constituição (1990-2009), que inaugura o Estado de Direito Democrático, e não vemos nenhuma política pública para a fixação de residência incrustada em direitos humanos, mas sim uma elitização tanto do recentemente extinto Fundo de Fomento à Habitação, bem como de bairros da classe alta e média moçambicana. Em Maputo, o murro de separação entre os bairros de classe média e alta (Sommerschield), de um lado, e das camadas desfavorecidas (Polana Caniço), de outro, são uma grande demonstração de quão socialmente desiguais são as zonas residenciais, denunciando o quão falacioso e enganador é o projecto socialista e de justiça social, advogado durante os 34 anos de Independência Nacional.

Por tudo isto, o ponto 1º do artigo 55º é, neste momento, um panfleto constitucional ilusório, sem dúvidas. Lamentável.

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro amigo,

Primeiro, gostaria de lhe congratular pelo trabalho que tem vindo a realizar no campo dos Direitos Humanos. Segundo, gostaria, se me permitir, de fazer algum comentário, ainda que superficial sobre este assunto. Ao fazer sua análise devia distinguir entre "Direito à Residencia" e "direito de fixar residência"...
Outro ponto que queria alertar é que, embora a Constituição de 90 fizesse referencia a este direito, a verdade é que temos uma nova que entrou em vigor em 2005, por isso com quatro anos (e nao 19 anos). A Constituição de 1990 sou vigorou por uns 15 anos.

um abraco

bantulândia disse...

Estimado anónimo!

Fico sempre gordo quando recebo comentários, particularmente aqueles que alertam para melhorar os meus escritos.
1. Coloquei no texto que não entraria em pormenores juridicos, porque de Direito nada entendo.

2. Nao me dei conta da distincão, embora, em última instância, observar que são distintos (direito a residencia e direito de fixar residencia). Nisso, dou a minha mão a palmatória. Porém, o debate colocado é que nem um nem outro são observados. Talvez um dia mostre em debate que a distincao entre direitos aproximados é fruto de um conservadorismo jurídico, que distingue, a risca, o direito a vida e o direito a saude, por exemplo. Vejo interdependenncia entre o direito a residencia e o direito de fixar residencia. Direito a residencia parece-me que está ao nivel abstrato e legal, significando que o cidadao pode reclamar a materializacao do mesmo junto das instancias do Estado...Veja que essa reclamacao pode resvalar na fixacao da mesma.

3. Quando falo da constituicao de 90, falo da constituicao que inaugurou o famoso Estado de Direito Democrário (segunda República, como alguns a apelizam 1990-2009). Na verdade, estou indo pela filosofia de questões histórico-republicanas - da Republica Popular de Mocambique a Republica de Mocambique.

4. Penso, sem medo de errar, que a matriz da CRM em vigor não envelhece a adoptada em 90'; pelo contrário a deu vida e crescimento jurídico-constitucional.

5. Muito obrigado pelos teus pontos. Debatamos sempre. Sempre pronto, para a reflexao. Nem tudo está acentuado, desculpe.

Mantenhamos o contacto.
Abrs, Josué Bila

Anónimo disse...

Paulo Tembe

Boa observacao silenciosa porque nos como mocambicanos deviamos tornar nossas ideias brilhantes a quem de direito de modo a contribuirmos para a flexibilidade das leis. Sou de opiniao que os mocambicanos tem ideias que podem progredir o pais mas, infelizmente nao torna-las publicas. sou de opiniao que este seu texto que li com muita atencao e apreciacao nao seja dado a conhecer numa forma de comunicacao interpessoal mas sim sob forma de comunicacao massiva quer seja fazer uso da pagina de opiniao de jornais e muito mais.

Um abraco-----
NB. retirei este comentário do meu email, hoje.

bantulândia disse...

Caro Amigo Josué Bila!
Acabas de levantar um ponto muito sensível,especialmente a Camada Juvenil que confronta com uma Habitação condigna,seguindo um velho pressuposto quem Casa quer Casa!isto infelizmente vai reflectir as futuras gera coes,temos alguns exemplos mesmo na Nossa África do lado Atlântico,Angola há sensivelmente 5 anos o Chefe do Estado criou um Gabinete controlado pessoalmente por ele e com uma equipe de Mérito Reconhecido para Sanar este Problema,tenho estado acompanhar a Famosa Transformação do Fundo de Habitação para Um Banco de Habitação,espero que não seja mais uma Miragem para o Inglês Ver.
Em Fevereiro eu havia Estado no Reino da Jordânia onde tenho alguns interesses Economicos foram lançados programas muito interessantes para Sanar o Problema de Habitação de Custos Controlados,alguma desta experiência levei para um Pais Africano e esta sendo um Sucesso,o importante e vontade Politica de Fazer Acontecer as coisas e não olhar a quem implemente sobre ponto de Vista Politico,Regional,Racial,Academico alias todos pontos de exclusão.
Caro Bila!Moçambique esta Independente há 34 anos e já existem competências reconhecidas o que deve estar a faltar e Coragem Politica e acabar com o clientilismo,Tachos,Amiguismos,temos sectores que deram provas em muitos anos que tem sido dirigidos com uma Gestão Danosa,Duvidosa e sem uma perspectiva de Mudança,,julgo que estas pessoas deviam se Demitir as vezes quando nao se pode ser um bom Mainato possa ser um bom Cozinheiro.
Habitação e Dignidade!!!
Mais não disse
João Jamal joao42ster@gmail.com
---recebido no meu e-mail.