quarta-feira, 1 de julho de 2009

Arão Valoi: “Jornalismo moçambicano não está orientado para direitos humanos”

Mais um intelectual moçambicano é entrevistado no bantulândia. Trata-se do jovem jornalista Arão Valoi*. Em apenas oito anos de carreira, ganhou três prémios jornalísticos. Um dos mais recentes é o Prémio de Melhor Reportagem sobre Direitos Humanos promovido pelo Instituto Marques do Valle Flor, em parceria com a União Europeia e o Sindicato Nacional de Jornalistas. Actualmente, presta o seu saber na Organização Internacional de Migração. Nesta entrevista, Valoi fala sobre o (não) contributo dos média moçambicanos na defesa dos direitos humanos. Num dos pontos, ele lembra que há jornalistas que não sabem da existência de instrumentos internacionais de direitos humanos. Josué Bila conduziu a entrevista.


Bantulândia -
Qual tem sido o papel dos jornalistas moçambicanos na defesa de direitos humanos?

Valoi - Olha, em geral, os jornalistas moçambicanos têm contribuido muito pouco para a defesa dos direitos humanos, embora haja algum esforço individual em fazer denúncias sobre a sua violação. Essa fraca contribuição acontece devido a vários factores conjugados, sendo de destacar a falta de uma cobertura mais qualificada sobre temas de direitos humanos. A cobertura mediática qualificada encerra em si muitos aspectos. Refere-se, por exemplo, à formação ou capacitação em direitos humanos e depois a especialização sobre esse tema, o que ainda não acontece em Moçambique. Na verdade, a falta dessa qualificação acaba reduzindo de forma substancial o papel que os jornalistas, como agentes de mudança, deveriam ter na promoção e defesa dos direitos humanos, na sua visão universal e multidisciplinar. Mas também podemos ver essa questão na perspectiva da “importância” que os Media em Moçambique dão a assuntos ligados a direitos humanos. Normalmente, o que interessa aos media é o que, segundo eles, vende e rende e o que dá mais audiência. Nesse fenómeno, que uns o apelidam de sensacionalismo e o jornalista brasileiro José Arbex Jr.(2001) chama de showrnalismo, os factos são transformados em mercadoria, custe o que custar. Isto pode se aliar ao facto de a sociedade moçambicana, em geral, pouco escolarizada, alimentar este tipo de notícias, de tal forma que é o que mais se consome. Note que em Moçambique, uma falsa notícia, na capa de um jornal, sobre a recaptura de Anibalzinho (um dos criminosos mais mediáticos) pode vender mais do que uma verdade. Em oposição, também na capa, uma notícia sobre a falta de água, em Massangena (província de Gaza), não vende. É um pouco disto que, quanto a mim, faz desvirtuar o sentido do jornalismo ético.

Bantulândia - Por que é comum que os jornais cubram o baleamento mortal de um cidadão pela Polícia numa perspectiva de direitos humanos e dificilmente reportam uma simples falta de pão e manteiga num foco (de violação) de direitos humanos. Porquê?

Valoi - Essa limitação da visão global dos direitos humanos resulta dessa falta de formação e especialização. Não gosto muito deste termo “especialização” para a realidade jornalística moçambicana, e já mostrei as razões pelas quais não me simpatizo, em debate público, mas a verdade é que a sua falta acaba tendo implicações em certas áreas do saber, nomeadamente em direitos humanos, em economia e negócios e outros domínios. Note que o tratamento que se dá à violência, por exemplo, reduz-se pura e simplesmente a crimes, atentados e relatórios de homicídios normalmente facultados pela PRM. Não existe uma abordagem estrutural e globalizante dos direitos humanos e é natural que a falta de acesso à água potável, de pão ou de sal seja visto nessa perspectiva. Note que não faltam notícias sobre fome nos media, mas a abordagem feita não está nunca orientada para a questão de direitos, mas simplesmente de factos e nunca se fala da responsabilização a quem de direito pela violação desses direitos. O jornalismo moçambicano não está orientado para direitos humanos. O que falta no jornalismo moçambicano, na verdade, é discutir políticas públicas e tentar influenciar que a questão de direitos humanos seja sempre incorporada na agenda governamental. Para mim, há, nos media moçambicanos, uma ausência de reflexão mais consistente sobre o processo de formulação e implementação das políticas e a consciência de que os jornalistas podem fazer algo para alterar certo establishment e, os direitos humanos, estando hoje em primeiro plano na agenda internacional, deviam ser objecto de análise, reflexão e acompanhamento sistemático por parte da imprensa.

Bantulândia -
Por que é difícil encontrar, nos textos jornalísticos, referência dos instrumentos (inter)nacionais de direitos humanos?

Valoi - É uma situação caricata, mas acho que alguns, repito, alguns dos jornalistas nem se quer tem o conhecimento da existência desses instrumentos ou se, pelo menos sabem da sua existência, poucas vezes os revisitaram. Mas também há jornalistas em Moçambique que se esforçam em fazer algo diferente, de tal forma que não é correcto estar sempre a desdenhar deles quando tentam fazer coisas boas. Até porque há em Moçambique, cada vez maior número de jornalistas que se estão a formar nas diferentes universidades do País, o que já é um sinal positivo. A leitura de livros e a consulta de certos instrumentos legais nacionais e internacionais é muito bom do ponto de vista de diversificação das fontes de informação e do enriquecimento do próprio trabalho jornalístico. Mas infelizmente, não existe, em geral, esse hábito por parte dos jornalistas moçambicanos e limitam-se ao “diz-se diz-se”, característico da formulação sensacionalista do jornalismo. A referência a instrumentos (inter) nacionais de direitos humanos requer também uma nova postura epistemiológica por parte dos jornalistas moçambicanos, requer uma reconfiguração da linguagem que, de forma específica, organiza as questões internacionais de acordo com os processos de globalização. Eu tenho dito que a própria forma de fazer jornalismo em Moçambique continua conservadora, agarrada ao que as tradicionais teorias de jornalismo ensinam, limitando-se, por assim dizer, ao que a fonte disse e nada mais. É uma formulação de “responsabilização” que tenta retirar o papel do jornalista como actor importante na produção da informação ou como um sujeito pensante e activo. Se a fonte não citou nenhum dispositivo legal, ao jornalista não resta mais nada do que reproduzir o que a fonte disse, sem nenhum trabalho visando o enriquecimento das informações colhidas. Também ao organizar as perguntas para uma entrevista programada, o jornalista não “vasculha” nenhum livro ou lei, não lê e vai ter com o entrevistado para “perguntar” e assim poder aprender e não para “entrevistar” e confrontar com ele certos conhecimentos. Tenho dito que em Moçambique, são poucos os jornalistas que fazem entrevistas, muitos fazem perguntas. A entrevista é, normalmente, uma confrontação entre o entrevistador e o entrevistado e isso implica que, no caso vertente de direitos humanos, o jornalista tenha um mínimo conhecimento da matéria que vai abordar. Se for para perguntar, terá de se contentar com o consumo da ordem estabelecida e transformar-se-à em caixa de ressonância.

Bantulândia -
As questões ambientais, a exemplo do desmantamento de florestas e a poluição de rios ou atmosférica, não figuram, de um modo geral, como direitos humanos. Que tem a dizer sobre isso?

Valoi - Ao notar esta falta de abordagens sobre questões ambientais no jornalismo, o MISA Moçambique, juntamente com os seus parceiros, tem promovido prémios anuais de jornalismo, e uma das categorias é sobre o meio ambiente. Nos últimos dias e, motivados por esse prémio ou incentivo, alguns jornalistas tem escrito algo sobre questões ambientais, mas mais uma vez, não numa perspectiva de direitos humanos. Também sobre desmatação e poluição tem havido artigos jornalísticos interessantes, mas em geral carecem dessa orientação. Eles são feitos numa perspectiva de denúncia, mas não em termos do impacto que isso tem para as comunidades ou populações locais como sujeitos com certos direitos, como o direito à vida, por exemplo, fixado no artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e nas constituições nacionais. Ora, uma interpretação imediata a esse postulado dá a entender que quando se diz “vida” incluí-se o meio ambiente equilibrado, pois, esta é uma das condições essenciais à existência da vida em toda a sua plenitude e formas.

Bantulândia -
Por que há dificuldades de encontrarmos jornalistas decididos e empenhados com os direitos humanos?

Valoi - Esta é uma pergunta muito difícil porque encerra motivações de ordem pessoal, mais também institucionais. Na minha modesta opinião, é preciso que haja vontade por parte do jornalista em dedicar, não diria exclusivamente porque em Moçambique isso é impossível no cenário actual, parte considerável do seu tempo a pesquisas sobre direitos humanos. Isso já seria um princípio para a especialização de que tanto se fala. Mas é preciso que os media tenham coragem de assumir esta pessoa que nem sempre irá produzir notícias. Uma das questões que tenho defendido é que a falta de especialização e, consequentemente, de um jornalismo investigativo em Moçambique, seja sobre direitos humanos ou outras áreas, deriva também da falta de disponibilidade de tempo para os jornalistas fazerem a investigação. Os chefes de redacção ainda não estão habituados em ver um repórter ficar duas semanas sem publicar um artigo, por mais que esteja envolvido numa investigação. Acusam-no de improdutividade e, cedo, ele terá de abortar a investigação e serví-la crua aos leitores por pressões institucionais e por medo de perder o seu emprego. Isso é comum nos media em Moçambique. Por isso, a mudança não deverá ser só por parte dos jornalistas, em termos individuais (formação, leitura e mais pesquisa) mas também deverá operar-se mudanças substanciais na filosofia do trabalho a nível institucional.

Bantulândia -
Que propostas os jornalistas poderiam contribuir para que os moçambicanos possam conhecer os seus direitos?

Valoi - Apesar de o cenário ser algo negativo, acho que tem havido algum despontar por parte de alguns media em elevar cada vez mais a consciência dos moçambicanos no tocante aos seus direitos. Tenho tido o prazer de ver várias notícias nos nossos órgãos de comunicação social que reportam situações que contribuem para a elevação da consciência dos moçambicanos e isso é muito importante porque, em Moçambique, as pessoas acreditam muito nos media. Estes são instrumentos importantes para a mudança de comportamento e acho que tem conseguido. A sugestão que daria era que cada um dos órgãos tivesse um espaço um tempo de antena dedicado exclusivamente a direitos humanos e que certos jornalistas escolhidos internamente fossem orientados para esta área. Era bom se isto acontecesse. Mas também pode partir da iniciativa do próprio jornalista, apresentando uma proposta ao seu superior hierárquico, com argumentos sólidos e convicentes.

Bantulândia -
Quem tem tomado a inicitiva de divulgar e discutir temas sobre direitos humanos reportados pelos jornais (sociedade civil, governo ou jornalistas)?

Valoi - Acho que os jornalistas e a sociedade civil, em termos de organizações não governamentais e representações religiosas. O Governo tem intervido muito pouco, excepto em casos em que por iniciativa dos jornalistas, aparece a dar esclarecimento de certas situações. Pessoalmente, acho que a dimensão do debate sobre direitos humanos em Moçambique é, por si, um incómodo ao Governo, uma vez ser ele próprio possuidor de uma máquina de repressão e violação sistemática de direitos humanos, ao mesmo tempo que seus executivos pouco conseguem dar seguimento à satisfação plena dos direitos económicos, sociais, ambientais e políticos aos cidadãos, em geral. As políticas governamentais falham em muitos aspectos, deixando as populações sem nenhum garante ou preservação dos seus direitos.

*Arão Valoi é jornalista moçambicano desde 2001. Formou-se na Escola de Jornalismo, em Maputo, de 1999 a 2002, tendo logo de seguida ingressado no Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) onde fez o curso de licenciatura em Administração Pública, tendo concluído em 2006. Já trabalhou para vários órgãos de comunicação social, desde os media audio-visuais até à imprensa escrita. Em 2007, quando coordenava o suplemento económico do semanário Meianoite, sagrou-se vencedor do Prémio de Melhor Jornalista Africano da CNN/Multichoice, categoria da lingua portuguesa. Nos finais de 2008 ganhou novamente mais dois prémios, nomeadamente o Prémio Ian Christie para Melhor Reportagem Económica, promovido pela Vodacom em parceria com o SNJ e o Prémio de Melhor Reportagem sobre Direitos Humanos promovido pelo Instituto Marques do Valle Flor em parceria com a União Europeia e o SNJ. Actualmente é jornalista freelancer, estando também a trabalhar para a Organização Internacional para as Migrações (OIM), em Maputo. É um dos membros-fundadores da Associação Moçambicana de Jornalistas Pró-direitos Humanos e Cidadania.

2 comentários:

celso disse...

Concordar com tudo que vem aqui já é muito bom mas, devo dizer também que a falta de vontade politica também contribui para todas estas lacunas, estas ideias são importadas e dificil de implementar, se não vejamos a TVM, o jornal Noticias e a RM, são os canais com maior expressão no País, a sensura é maior de tal modo que limite os indices de investigação dos seus trabalahdores ou seja (Joornalistas-reporteres), sobre os midías independentes é logicos que o importante é vender trata-se de uma actividade com fins lucrativos, não obstante eles dentro de todos este esquema de trabalho deviam dedicar uma página se não uma partinha do seu espaço para falarem de Direitos humanos mas, está visto quer eles não gostam de correr riscos como tantos têm passado por represálias... Em fim... nada...

bantulândia disse...

Concordo contigo... o não querer correr riscos pode estar aliado a cobardia... o silêncio, perante a violação dos direitos humanos, é um retrocesso à implementação dos direitos humanos... E os jornalistas têm um papel fundamental na cobrança das autoridades governamentais...