sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Filósofo Severino Ngoenha: "A cultura deve interrogar os direitos humanos"


 Foto do Blogue da Cidinha.


Numa entrevista concedida conjuntamente ao blogue Bantulândia e SAVANA em ambiente fraternal de sua casa, em Maputo, com duração de apenas 24 minutos, de uma tarde calma, o filósofo cosmopolita Severino Ngoenha debate sobre direitos humanos e corrupção. Observa: “Não podemos usar os direitos humanos como justificação das nossas bizarrias culturais, como é o caso da poligamia”. Critica, por isso, o Presidente sul africano Jacob Zuma que, em nome da
cultura poligâmica, mantém umas três esposas, dando um mau exemplo no respeito à dignidade d(aquel)as mulheres, pertencentes a um país com altos índices de HIV/SIDA, cujo contágio principal é vinculado às relações sexuais.
“A poligamia do Presidente Jacob Zuma fere direitos humanos” e “a justificação de um Presidente que mantêm três esposas, invocando tradições quando lhe convém, deve ser completamente condenado”. Ngoenha fala, ainda, das propostas em torno do futuro mestrado em filosofia de direitos humanos na Universidade São Tomás de Moçambique, na qual é director de pós-graduação.


Josué Bila*

USTM E DIREITOS HUMANOS
Alguns cientistas sociais e juristas têm levantado debates e escritos, ainda que incipientes, sobre direitos humanos em Moçambique. Então, em que a filosofia (o filósofo) pode contribuir para o debate sobre direitos humanos no País?
- Olha, eu para além de ser filósofo e professor, sou, há um ano, director de pós-graduação da Universidade São Tomás de Moçambique (USTM). Esta universidade tem mestrado em Filosofia. A minha proposta é trabalhar, juntamente com um colega que vamos chamá-lo brevemente, para a transformação do actual mestrado em filosofia num mestrado em filosofia de direitos humanos, no sentido de dar-lhe um cunho muito específico e uma particularidade moçambicana.

Que propostas de debate serão trazidas pela USTM?

Pretendo ou pretendemos trazer reflexão filosófica, digamos, mais aguda sobre o que são direitos humanos em termos conceituais e seus desdobramentos no contexto global e moçambicano. Então, como filósofo, no próximo ano, estou disposto a contribuir no debate sobre direitos humanos, o que implica, em primeiro lugar, estudar o que são direitos humanos; qual é a filosofia de direitos humanos; a contribuição histórica e filosófica dos filósofos de direitos humanos. Daqui, podemos entrar em problemáticas que podem parecer mais conflituais, como por exemplo, os direitos culturais. Estou, agora, a lembrar, por exemplo, do filósofo suíço que está em Friburgo, de nome Patrick. Este diz que o que falta aos direitos humanos são os direitos culturais, porque os direitos humanos sempre ignoraram um pouco a dimensão das culturas. Os direitos humanos são assim chamados porque é a maneira como o Homem e a Humanidade é vista pelo Ocidente; um Ocidente do XVIII que impera através dos seus valores até hoje. O Ocidente ignorou completamente que o Homem é uno e múltiplo, o que a Antropologia nos ensina muitas vezes. O Homem desdobra-se em diversidades. Dizer que o Homem deve comportar-se desta ou daquela forma é esquecer-se que este Homem, que é uno, tem manifestações diferentes, as quais dão razão de sua existência.

Reivindicar direitos culturais...
Olha, uma vez que o Ocidente via o mundo a partir dos seus próprios olhos, os outros quadrantes do mundo, particularmente o continente africano, começa a reivindicar direitos culturais. Para mim, como filósofo, reivindicar direitos culturais significa incentivar a necessidade de se tomar em conta as particularidades humanas e culturais no debate sobre direitos humanos. Aliás, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos tem em conta particularidades culturais africanas, que não são tomadas em conta na Declaração Universal dos Direitos Humanos... O grande perigo que os africanos evitaram, através da sua Carta, é o universalismo etnocêntrico (ocidental) que se impõe ao mundo. Estes temas, certamente, farão parte dos nossos debates acadêmicos e intelectuais na USTM.

Como começarmos a produzir conhecimentos em direitos humanos a partir de nós e para nós, em meio à dependência financeira externa?
É uma situação complicada, justamente por sermos um país com forte dependência. Mesmo as nossas lucubrações intelectuais e agendas científicas são intrinsecamente ligadas e dependentes da vontade do outro. Mas, ao mesmo tempo, temos que encontrar pequenos espaços para aproveitar as margens que os países financiadores e ONGs nos deixam para avançar com o debate útil, atinente aos nossos próprios interesses. Entretanto, é necessário que lembremos que direitos humanos podem ser duas coisas. Primeiro: os direitos humanos podem ser estratégia neocolonial para nos impor vontades e até para fazer intervenções externas. É visível isso através da intervenção do Ocidente. Recentemente, a intervenção ocidental sobre a Líbia ou Tunísia, em nome de direitos humanos; e não interveio na Síria, porque não há petróleo. Há uma estratégia neocolonial que é um facto.
Segundo: há um despertamento de mais jovens sobre direitos humanos. Esta consciência está a crescer e vai dinamizando o debate de idéias em direitos humanos, mesmo que não haja autonomia financeira. O futuro de debate sobre direitos humanos em Moçambique pode vir, sim, a frutificar, porque começa a existir uma percepção de que os valores de direitos humanos ultrapassam as agendas hegemónicas do Ocidente e as nossas culturas.

POLIGAMIA E JACOB ZUMA
Como debater a poligamia, dentro dos direitos culturais (particularismos), sem combater os direitos humanos (universalismo)?

Primeiro aspecto: existem pensadores, como o italiano Gianni Vattimo e o português Boaventura de Sousa Santos, que propõem a reabilitação de espaços culturais que foram completamente destruídas pela hegemonia ocidental, cujo resultado é pertencer à periferia. O problema dos direitos humanos é saber o que é direito humano e qual é a relação que estes direitos humanos tem que ter em relação às culturas. Se você disser que cada ser humano (homem e mulher) tem certo nível de dignidade, respeitabilidade, direito a escolha, direito a vida livre, direito a auto-afirmação, direito a educação (mandamos as crianças para a escola sem distinção entre rapazes e raparigas), como admitir, ao mesmo tempo, que um homem tenha três esposas, o que é inconcebível num mundo no qual vivemos.
Segundo aspecto: temos de fazer distinção entre o que é cultural, de um lado, e, histórico-cultural, de outro. (...) Ainda esta manhã, conversava com alguém que dizia você (S. Ngwenha) só olha o sul de Moçambique (Maputo, Gaza e Inhambane)... Nós fomos a parte da África em que primeiro deu escravos e, por último, deu escravos. Depois tivemos trabalhos forçados, numa altura em que os homens do sul, fugiam os trabalhos forçados, como o xibalo, em virtude da colonização portuguesa para as minas da África do Sul, onde ganhavam algum dinheiro. Então, você (Ngwenha) estava numa zona onde havia escassez de homens, o que favorecia o aparecimento da poligamia. O que era um aspecto histórico (poligamia), até deplorável à nossa situação, tornou-se um aspecto cultural.

Quer dizer que a poligamia não nos é tradicional, no sentido milenar?
A poligamia é alguma coisa que apareceu num percurso histórico-cultural. Os antropólogos e historiadores explicam-na de maneira diferente. Tentar fazer a poligamia um imperativo categórico quase kantiano (Emmanuel Kant) que faça de nós polígamos, em essência, é contraproducente. Posso tentar lembrar aqui o Islão: Maomé diz, pelo Alcorão, que o máximo de mulheres que um homem pode ter são quatro, porque isso era prático naquelas condições culturais. Mas, o mesmo nunca disse que o homem vai ficar sempre com quatro mulheres. Porém, pode-se imaginar que com a evolução dos costumes, educação, direitos das mulheres e participação pública foi se percebendo que é possível inverter a cultura da poligamia... Assim, não podemos usar os direitos humanos como justificação das nossas bizarrias culturais, como é o caso da poligamia. A cultura deve ser capaz de interrogar os direitos humanos e os direitos humanos devem interrogar a cultura. Os direitos humanos devem ser capazes de dialogar constantemente com as particularidades culturais divergentes, para que eles (direitos humanos) não sejam uma prolongação de direitos ocidentais.

Dentro desse argumento, qual é avaliação que faz da poligamia de Jacob Zuma, sendo o mais alto magistrado da África do Sul, país com altos índices de HIV/SIDA?
O Presidente Jacob Zuma comete bizarrice, por ser polígamo. No mundo em que vivemos e nas condições históricas e sociais nas quais estamos, a justificação de um Presidente que mantêm três esposas, invocando tradições quando lhe convém, deve ser completamente condenado”. Não se trata de dignidade de Zuma ou da África do Sul ou da África no seu todo, mas sim das mulheres que as possui. Se ele aceitar que cada uma delas possa ter três homens, então, não tem problemas, porque, no mínimo, estabelece o critério de igualdade. Mas que igualdade queremos numa sociedade que diz “one man, one vote”, (ou seja um Homem, um voto: dignidade igual. Se ele tem três esposas, elas tem o mesmo direito de cada uma delas manter três esposos). Parece que Zuma entra em contradição, na sua situação de mais alto magistrado da África do Sul, com implicações no seu juramento, ao prometer defender a Constituição, em sua investidura. Em linhas gerais, a poligamia do presidente Jacob Zuma fere direitos humanos.

CORRUPÇÃO VERSUS DIREITOS HUMANOS

Qual é o impacto da corrupção na implementação de direitos humanos?
(...) Moçambique tem muita corrupção. Mas, essa muita corrupção moçambicana nada é, se comparada com a corrupção da Itália de Silvio Berlusconi (ex-Primeiro-Minstro da Itália) ou com o Chicago de Alphonsus Gabriel Al Capone (gângster ítalo-americano, 1899-1947). A corrupção moçambicana é uma coisa ridícula... é coisa ridícula.

Pensa que a corrupção moçambicana seja ridícula para a nossa realidade?
A nossa corrupção não tem a ver com a questão de direitos humanos. Tem a ver com o Direito, simplesmente. Um país deve ter leis e lutar para fazer aplicar essas leis. Um país deve ter ordem e fazer aplicar a ordem. Um país deve lutar contra o abuso e corrupção. Eu acho que a questão da corrupção, repito, tem a ver com o Direito, simplesmente.

Minha colocação tem a ver com a corrupção que desvia recursos para a implementação dos direitos humanos...
Não acho que haja muito desvio para a implementação de direitos humanos. Eu acho que haja (como diz um meu amigo que ocupa lugar na hierarquia política moçambicana. Até foi ministro no último governo) o nascimento selvagem do capital. É o que aconteceu na Europa no Sec. XVII e XVIII, onde a maneira selvagem de produzir dinheiro e riquezas fazia parte do social. Agora, sim, você pode falar de direitos humanos, porque para a produção selvagem de dinheiro e riquezas tem que passar pela cabeça de outras pessoas. E nessa altura o corrupto não respeita as outras pessoas. Nisso, posso lembrar a expressão francesa “laissez–faire, laissez-passer”(deixem as pessoas fazerem tal como escolheram, deixem passar as mercadorias), que, em Moçambique, traduziu-se com o chissanismo chamado cabritismo -“o cabrito come onde está amarrado”

Até que ponto a expressão “o cabrito come onde está amarrado”, emitida por Joaquim Chissano, ex-presidente da República, influenciou a consciencialização pública para a corrupção?
Joaquim Chissano, quando assumia a Presidência da República, não foi feliz nessa expressão. Ele não foi feliz nisso, mesmo que não quisesse usar essa expressão. Não há mal algum em afirmar que o ex-presidente Chissano não foi feliz. Ele estava numa situação de abertura, onde tudo era proibido e tudo passou a ser permitido. Só que dizer que cada um se arranje e come onde estiver amarrado criou uma espécie de concorrência e luta desenfreada; e que ficaram sufocados aqueles sem capacidade de luta para o roubo. E, aqui, está, filosoficamente, a separação do contratualismo entre as teorias de Rousseau (o Estado tem que reequilibrar as diferenças sociais) e de Locke (o Estado tem que proteger as propriedades e capacidades dos indivíduos)... Por isso, temos de perguntar se o Estado é um espaço de luta de uns contra todos ou um espaço de equilíbrio que permite que todos possam viver juntos.

*Publicado originalmente no jornal SAVANA (10.fevereiro.2012. Ano XIX. No 944. Pags 4-5

1 comentário:

Julio Khosa disse...

Gostei muito deste artigo.Suscita muita coisa que diz respeito à nossa moçambicanidade. Será que somos moçambicanos? africanos? A nossa verdadeira identidade foi embora!!!
Quem somos nós? Moçambicanos? africanos? não pode ser. se nós mesmos degradamos os nossos valores ético e morais!!! Quem será por nós senão nós por nós mesmos? O outrem não pode se dedicar por nós sem nenhum interesse alheio a nossa vontade (expectativas). Que sejamos nós mesmos a reidificar, reconstruir a nossa identidade ética e moral. JK.