É o juiz conselheiro João Carlos Trindade quem o reconhece
Ser branco dá vantagens- e lamenta o aportuguesamento das universidades privadas...
Entrevista conduzida por Josué Bila*
João Carlos Trindade, um dos juizes conselheiros do Tribunal Supremo (TS) e director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), reconheceu, em entrevista ao Embondeiro, que nota, com muita infelicidade, que ser branco dá uma série de vantagens em Moçambique, em comparação com os que não são desta raça. A mim, como cidadão moçambicano, custa muito – faço das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser
branco. Quantas vezes, vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo: “quer atender a mim, mas este senhor está à minha frente”, sublinha. Refere ainda que Moçambique tem que deixar de ser um país onde quem tem dinheiro e está próximo dos centros de decisão política e do poder consegue resolver os seus problemas. “E quem é pobre por viver na zona periférica do poder não tem o mínimo para sobreviver”, frisa.
Nesta entrevista, aquele juiz-conselheiro afirma ainda que o país possui um sistema desequilibrado de administração de justiça, com o que se tem cadeias superlotadas de gente que não devia lá estar detida ou presa. “E temos muita gente que lá devia estar, mas que não está. Anda muita gente a nos ameaçar. Eu próprio fui assaltado à porta de minha casa”, enfatiza. Defende que para que os magistrados correspondam às expectativas dos cidadãos estes devem ter conhecimentos sólidos da realidade sócio-antropológica do país. Sobre as instituições de ensino superior, especialmente as suas faculdades de Direito, lança a seguinte lamentação: “universidades privadas usam programas portugueses”.
Embondeiro - O senhor juiz conselheiro defende, na obra Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique (2003), de que é co-autor com o Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, que o nosso sistema de administração da justiça não reflecte as condições multi-éticas e multiculturais de um país periférico.
· O que deve ser feito para a satisfação dessas condições?
JCT- Bom, na minha perspectiva e no quadro do trabalho que temos vindo a desenvolver aqui no Centro de Formação Jurídica e Judiciária, tenho mostrado que o País só sairá a ganhar se tiver em conta a sua própria realidade. Nós, durante muito tempo, na área de Justiça, fomos receptores de modelos que serviram noutras realidades e noutras épocas da história, sem ter em conta o contexto ético e cultural moçambicano. Moçambique é um país que globalmente é periférico. E, dentro da mesma periferia, há realidades diferentes. Por exemplo, é mais periférico o moçambicano do distrito de Chicualacuala, província de Gaza, do que o da cidade de Maputo. Isso significa que Moçambique tem vários países sociais, económicos e políticos, dentro de um único país, para além de termos vários países judiciários. Uma das soluções para se sair desse marasmo em que o sector de administração da justiça se encontra mergulhado poderá ser a Lei de Base do Sistema de Administração da Justiça (LBSAJ), que actualmente está em debate. Esta procurará concretizar algumas das idéias fornecidas pelo estudo que vocês citaram (Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique - 2003) e outros posteriores a esse que procurarão responder às várias preocupações da Justiça. Na sequência desta lei de base, vamos preparar a revisão da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários e Comunitários e da Lei de Acesso à Justiça.
Embondeiro - Será que essas leis ora em perspectiva trarão soluções?
JCT - Essas leis procuram acolher as soluções que o CFJJ propôs. As soluções passam, grosso modo, pela conjugação e interligação de vários níveis de tribunais: os judiciais, comunitários e por aí em diante. No caso de tribunais comunitários propomos que continuem a funcionar com aqueles juizes que trabalhem com o bom-senso, que possam decidir os casos na base de equidade, tendo em conta o contexto cultural, étnico e grupal de cada região, articulando-se depois com o Sistema Judicial. Por isso que propomos a articulação de vários organismos, nomeadamente Conselhos Provinciais de Justiças Comunitárias, para administrarem os tribunais comunitários e fazerem a ponte com Tribunais Judiciais a nível de distrito, de modo a que, por exemplo, uma pessoa que tenha um conflito na família ou numa zona rural a nível de sua comunidade veja esse conflito resolvido no Tribunal Comunitário (TC), dentro de princípios de equidade. E, se uma das partes não sair feliz da resolução do TC, poderá recorrer ao Tribunal Distrital (TD). E aí no TD é onde já se encontram juizes profissionais com licenciatura em Direito que poderão julgar recursos vindos dos TC, utilizando os mesmos critérios, isto é, equidade, bom senso e pressupostos empíricos.
Embondeiro - Que casos acha que devem ser julgados nos Tribunais Comunitários?
JCT - Nós temos zonas no nosso País que são zonas de sistema matrilinear e patrilinear. Ora, é óbvio que a solução de um conflito familiar de natureza conjugal e de divisão de bens é diferente em função daquilo que é a cultura e as normas locais vigentes, que não estão escritas, mas que foram transmitidas de geração em geração. O que nós propomos é que se respeitem essas normas e diversidades culturais. Não tenhamos a tentação de pensarmos que o respeito às normas locais põe em causa a unidade nacional, porque esta se constrói com base na diversidade e não na tentativa de homogenizar algo que não pode ser homogenizado. Moçambique é um país complexo, devido às varias realidades culturais, religiosas e étnicas, e a nossa proposta é de que não se trate de igual maneira o que é, pela sua natureza, diferente, ou seja, o nosso princípio básico é este: as coisas devem ser tratadas de forma igual quando forem iguais e diferentes quando forem diferentes, mas dentro de um certo limite, que é a Constituição da República, pois ela defende direitos iguais para todos cidadãos. Isso significa que, ao Tribunal Comunitário, não pode ser permitido aplicar sansões que são proibidas pela Constituição, nomeadamente sanções corporais e outras. Temos de estar atentos para que este não viole o direito igual entre homens e mulheres.
Embondeiro - Neste momento histórico, entre os tribunais judiciais de nível distrital e provincial, em quais o País deve investir mais?
JCT – O que nós apontamos acima revela em si que o Estado deve investir com mais recursos materiais, humanos e financeiros a nível de distrito, por aquele ser o coração do sistema judicial. A nossa idéia é de vermos canalizados para os tribunais distritais grande parte das competências que estão ao nível dos tribunais provinciais, libertando estes para outro tipo de conflito e para usar mais a sua capacidade de tribunais de recurso de segunda instância. Esse processo vai implicar a libertação do Tribunal Supremo (primeira instância) da sobrecarga de processos que chegam lá que poderiam ser resolvidos ao nível provincial.
Embondeiro – Há luzes nisso?
JCT – Nós, o CFJJ, vamos propor a revisão dessa lei para consagrar exactamente uma maior ligação dos tribunais comunitários ao Sistema Judicial, porque eles são uma continuação dos tribunais populares, que existiram no tempo do socialism0. A regulamentação dos tribunais comunitários era relativamente simples, porque nós tínhamos uma e única força política no país, ou seja, o partido-Estado, que é quem indicava os candidatos para trabalharem nesses tribunais. As assembléias do povo aos vários níveis elegiam os candidatos e os tribunais começavam a funcionar. Hoje, temos uma realidade pluralista em termos políticos e sociais, daí a necessidade de os tribunais comunitários reflectirem as várias sensibilidades políticas, interesses sociais e outras forças presentes no terreno. Propomos ainda que sejam discutidas as competências de cada um dos tribunais, pois a lei actual, por exemplo, diz que os tribunais judiciais podem dicidir sobre casos a que se aplique um determinado número de sanções. O que é uma definição pela negativa, porque não se sabe quem decidir ou julgar o furto de uma galinha é competência de que tribunal. Por exemplo, o roubo de uma galinha pode ser punida por uma pena de multa, mas, por sua vez, o Código Penal diz que quem furtar algo de uma pessoa pode ser sujeito a uma pena de prisão. Ora, a pena de uma prisão não pode ser aplicada por um tribunal comunitário. Onde ficamos? Onde é julgado o furto de uma galinha? É por essa razão que é urgente clarificar o campo de actuação de uns órgãos e de outros.
Embondeiro - Em sua opinião, onde deve ser julgado o furto de uma galinha?
JCT – Eu acho que deve ser julgado no tribunal comunitário, porque se nós julgamos o furto de uma galinha com a possibilidade de sujeitar o autor de crime do furto a uma pena de prisão, nunca vamos vencer o problema da superlotação das cadeias. O grande problema que nós temos é que o sistema é muito desequilibrado: nós temos cadeias superlotadas de gente que não devia lá estar e temos gente que lá devia estar, mas que não está. Anda aí muita gente nas ruas a nos ameaçar. Estamos, neste momento, a atravessar uma onde criminalidade. Eu, particularmente, fui assaltado por um individuo à porta de minha casa.
Embondeiro – O que é que falta nas faculdades de Direito (privadas e públicas), para que tenhamos juristas com conhecimento da realidade antropológica e sociológica do País?
JCT – O que nos falta é que nós devemos mudar a lógica de formação. O que tem perseguido a abertura das universidades privadas é a lógica do mercado: estamos numa economia de mercado e de iniciativa privada, portanto, se surge uma entidade que pretenda abrir uma faculdade privada o Estado autoriza. Só que o Estado não tem tido a capacidade de controlar a qualidade de formação, programas curriculares e a respectiva adequação desses programas à realidade moçambicana. O que acontece é que 90 a 100 por cento das universidades privadas, no caso concreto das faculdades de Direito, utilizam programas das universidades portugueses com as quais têm acordos de cooperação e transportam cá os seus programas com um corpo docente que não está preparado. Portanto, o Estado deve ter um papel regulador muito mais interveniente do que o que tem até agora. E deve-se apostar na qualidade de educação. E a qualidade de educação passa não só por dar competências técnicas, mas, também, por conferir aos formandos nas faculdades de direito conhecimentos antropológicos e sociológicos, o que temos feito, aqui, no CFJJ, para que uma pessoa que é colocada em Cuamba ou Chicualacualala tenha instrumentos para o meio onde está e para poder se articular nesse meio e satisfaça as necessidades e as aspirações das pessoas. Penso que se for uma pessoa que é formada à imagem e semelhança das universidades portuguesas, na base do Direito Português, e ser indicado a magistrado nesses meios comunitários, terá sempre dificuldades de perceber o meio em que se encontra. Ele pode ter dificuldades de estar a serviço da cidadania moçambicana.
Embondeiro - O que acha da Ordem de Advogados de Moçambique?
JCT – A Ordem dos Advogados tem que se libertar um pouco da concepção demasiado corporativista para se tornar num órgão que também se preocupa com questões sociais. A advogacia não pode ser uma profissão para ganhar dinheiro. Tem de ser uma profissão para fazer justiça! Quantas vezes nós ouvimos os advogados a reclamarem que são o terceiro pilar da justiça. Para serem terceiro sector da justiça devem ter preocupações sociais. Devem apoiar as pessoas mais carenciadas, pobres e aquelas pessoas que não têm condições para verem exactamente os seus direitos defendidos. E ai ela (ordem dos advogados) estará mais socializada.
Embondeiro – Qual é o quadro dos direitos humanos em Moçambique, antes e depois da Constituição de ’90?JCT – Em termos de direitos humanos, nomeadamente o direito à liberdade, à vida, à integridade física e outros que são da primeira geração, o Estado nem esses conseguiu assegurar aos cidadãos, quanto mais os de segunda geração: o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação. Sobre estes estamos muito longe de assegurar. Mas, fiquemos nos direitos de primeira geração: há muito cidadão que é vítima de abusos de autoridade, que não tem onde se dirigir ou apresentar a queixa ou ainda se apresentar queixa não como ver a sua pretensão ser encaminhada. Portanto, há um trabalho enorme por fazer. Acho que o Estado pode sair a ganhar se olhar as organizações da sociedade civil não como inimigas, mas como aliadas para a dignificação dos direitos humanos da cidadania. Muita gente não gosta da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos e do estilo de sua presidente, Maria Alice Mabota. Eu devo confessar que admiro o papel que a LDH desempenha, em particular de Alice Mabota, por ser uma mulher combativa, que enfrenta as coisas e que sempre vai a frente. Obviamente, nem sempre estou de acordo com o que ela diz e faz... nem tenho que estar. Mas, globalmente, a LDH tem tido um papel muito positiva. Não vejo a LDH como inimiga do Estado; pelo contrário, vejo o papel da LDH como aquele que chama a atenção do Estado, para melhorar o seu desempenho e a sua performance para que realmente o cidadão, quaisquer que seja, se sinta realmente cidadão.
Embondeiro - O que acha do exercício de cidadania em Moçambique?
JCT – Nós não podemos ser um país onde quem tem dinheiro, conhecimento e está próximo dos centros de decisão política e do poder e consiga resolver os seus problemas e quem é pobre por viver na zona periférica do poder não tem o mínimo para sobreviver. Não foi com esses ideais que compatriotas nossos se bateram. Todos devemos nos preocupar para que os direitos de cidadania se estendam a todos os cidadãos moçambicanos, independentemente da sua condição social. A mim, como cidadão moçambicano, custa-me muito – faço das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser branco. Quantas vezes vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo dizendo: “Quer atender a mim, mas este senhor está à minha frente. Quero ser atendido tal como os outros.
*A 15 de Junho de 2005, o juiz conselheiro do Tribunal Supremo e então director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, João Carlos Trindade, concedeu-me a supra-entrevista, quando estava a serviço do extinto jornal Embondeiro, em Maputo-Moçambique. Pela relevância de temáticas nela debatidas, julguei oportuno republicá-lo em forma electrónica, aqui, no bantulândia e não só. Aliás, paralelamente ao debate suscitado nalguns círculos moçambicanos, extratos da entrevista foram usados como fonte bibliográfica de um livro sobre racismo, publicado em Maputo (infelizmente, minha memória não se lembra do título).
São Paulo
Vésperas de natal de 2009
Josué Bila
Ser branco dá vantagens- e lamenta o aportuguesamento das universidades privadas...
Entrevista conduzida por Josué Bila*
João Carlos Trindade, um dos juizes conselheiros do Tribunal Supremo (TS) e director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), reconheceu, em entrevista ao Embondeiro, que nota, com muita infelicidade, que ser branco dá uma série de vantagens em Moçambique, em comparação com os que não são desta raça. A mim, como cidadão moçambicano, custa muito – faço das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser
branco. Quantas vezes, vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo: “quer atender a mim, mas este senhor está à minha frente”, sublinha. Refere ainda que Moçambique tem que deixar de ser um país onde quem tem dinheiro e está próximo dos centros de decisão política e do poder consegue resolver os seus problemas. “E quem é pobre por viver na zona periférica do poder não tem o mínimo para sobreviver”, frisa.
Nesta entrevista, aquele juiz-conselheiro afirma ainda que o país possui um sistema desequilibrado de administração de justiça, com o que se tem cadeias superlotadas de gente que não devia lá estar detida ou presa. “E temos muita gente que lá devia estar, mas que não está. Anda muita gente a nos ameaçar. Eu próprio fui assaltado à porta de minha casa”, enfatiza. Defende que para que os magistrados correspondam às expectativas dos cidadãos estes devem ter conhecimentos sólidos da realidade sócio-antropológica do país. Sobre as instituições de ensino superior, especialmente as suas faculdades de Direito, lança a seguinte lamentação: “universidades privadas usam programas portugueses”.
Embondeiro - O senhor juiz conselheiro defende, na obra Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique (2003), de que é co-autor com o Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, que o nosso sistema de administração da justiça não reflecte as condições multi-éticas e multiculturais de um país periférico.
· O que deve ser feito para a satisfação dessas condições?
JCT- Bom, na minha perspectiva e no quadro do trabalho que temos vindo a desenvolver aqui no Centro de Formação Jurídica e Judiciária, tenho mostrado que o País só sairá a ganhar se tiver em conta a sua própria realidade. Nós, durante muito tempo, na área de Justiça, fomos receptores de modelos que serviram noutras realidades e noutras épocas da história, sem ter em conta o contexto ético e cultural moçambicano. Moçambique é um país que globalmente é periférico. E, dentro da mesma periferia, há realidades diferentes. Por exemplo, é mais periférico o moçambicano do distrito de Chicualacuala, província de Gaza, do que o da cidade de Maputo. Isso significa que Moçambique tem vários países sociais, económicos e políticos, dentro de um único país, para além de termos vários países judiciários. Uma das soluções para se sair desse marasmo em que o sector de administração da justiça se encontra mergulhado poderá ser a Lei de Base do Sistema de Administração da Justiça (LBSAJ), que actualmente está em debate. Esta procurará concretizar algumas das idéias fornecidas pelo estudo que vocês citaram (Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique - 2003) e outros posteriores a esse que procurarão responder às várias preocupações da Justiça. Na sequência desta lei de base, vamos preparar a revisão da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários e Comunitários e da Lei de Acesso à Justiça.
Embondeiro - Será que essas leis ora em perspectiva trarão soluções?
JCT - Essas leis procuram acolher as soluções que o CFJJ propôs. As soluções passam, grosso modo, pela conjugação e interligação de vários níveis de tribunais: os judiciais, comunitários e por aí em diante. No caso de tribunais comunitários propomos que continuem a funcionar com aqueles juizes que trabalhem com o bom-senso, que possam decidir os casos na base de equidade, tendo em conta o contexto cultural, étnico e grupal de cada região, articulando-se depois com o Sistema Judicial. Por isso que propomos a articulação de vários organismos, nomeadamente Conselhos Provinciais de Justiças Comunitárias, para administrarem os tribunais comunitários e fazerem a ponte com Tribunais Judiciais a nível de distrito, de modo a que, por exemplo, uma pessoa que tenha um conflito na família ou numa zona rural a nível de sua comunidade veja esse conflito resolvido no Tribunal Comunitário (TC), dentro de princípios de equidade. E, se uma das partes não sair feliz da resolução do TC, poderá recorrer ao Tribunal Distrital (TD). E aí no TD é onde já se encontram juizes profissionais com licenciatura em Direito que poderão julgar recursos vindos dos TC, utilizando os mesmos critérios, isto é, equidade, bom senso e pressupostos empíricos.
Embondeiro - Que casos acha que devem ser julgados nos Tribunais Comunitários?
JCT - Nós temos zonas no nosso País que são zonas de sistema matrilinear e patrilinear. Ora, é óbvio que a solução de um conflito familiar de natureza conjugal e de divisão de bens é diferente em função daquilo que é a cultura e as normas locais vigentes, que não estão escritas, mas que foram transmitidas de geração em geração. O que nós propomos é que se respeitem essas normas e diversidades culturais. Não tenhamos a tentação de pensarmos que o respeito às normas locais põe em causa a unidade nacional, porque esta se constrói com base na diversidade e não na tentativa de homogenizar algo que não pode ser homogenizado. Moçambique é um país complexo, devido às varias realidades culturais, religiosas e étnicas, e a nossa proposta é de que não se trate de igual maneira o que é, pela sua natureza, diferente, ou seja, o nosso princípio básico é este: as coisas devem ser tratadas de forma igual quando forem iguais e diferentes quando forem diferentes, mas dentro de um certo limite, que é a Constituição da República, pois ela defende direitos iguais para todos cidadãos. Isso significa que, ao Tribunal Comunitário, não pode ser permitido aplicar sansões que são proibidas pela Constituição, nomeadamente sanções corporais e outras. Temos de estar atentos para que este não viole o direito igual entre homens e mulheres.
Embondeiro - Neste momento histórico, entre os tribunais judiciais de nível distrital e provincial, em quais o País deve investir mais?
JCT – O que nós apontamos acima revela em si que o Estado deve investir com mais recursos materiais, humanos e financeiros a nível de distrito, por aquele ser o coração do sistema judicial. A nossa idéia é de vermos canalizados para os tribunais distritais grande parte das competências que estão ao nível dos tribunais provinciais, libertando estes para outro tipo de conflito e para usar mais a sua capacidade de tribunais de recurso de segunda instância. Esse processo vai implicar a libertação do Tribunal Supremo (primeira instância) da sobrecarga de processos que chegam lá que poderiam ser resolvidos ao nível provincial.
Embondeiro – Há luzes nisso?
JCT – Nós, o CFJJ, vamos propor a revisão dessa lei para consagrar exactamente uma maior ligação dos tribunais comunitários ao Sistema Judicial, porque eles são uma continuação dos tribunais populares, que existiram no tempo do socialism0. A regulamentação dos tribunais comunitários era relativamente simples, porque nós tínhamos uma e única força política no país, ou seja, o partido-Estado, que é quem indicava os candidatos para trabalharem nesses tribunais. As assembléias do povo aos vários níveis elegiam os candidatos e os tribunais começavam a funcionar. Hoje, temos uma realidade pluralista em termos políticos e sociais, daí a necessidade de os tribunais comunitários reflectirem as várias sensibilidades políticas, interesses sociais e outras forças presentes no terreno. Propomos ainda que sejam discutidas as competências de cada um dos tribunais, pois a lei actual, por exemplo, diz que os tribunais judiciais podem dicidir sobre casos a que se aplique um determinado número de sanções. O que é uma definição pela negativa, porque não se sabe quem decidir ou julgar o furto de uma galinha é competência de que tribunal. Por exemplo, o roubo de uma galinha pode ser punida por uma pena de multa, mas, por sua vez, o Código Penal diz que quem furtar algo de uma pessoa pode ser sujeito a uma pena de prisão. Ora, a pena de uma prisão não pode ser aplicada por um tribunal comunitário. Onde ficamos? Onde é julgado o furto de uma galinha? É por essa razão que é urgente clarificar o campo de actuação de uns órgãos e de outros.
Embondeiro - Em sua opinião, onde deve ser julgado o furto de uma galinha?
JCT – Eu acho que deve ser julgado no tribunal comunitário, porque se nós julgamos o furto de uma galinha com a possibilidade de sujeitar o autor de crime do furto a uma pena de prisão, nunca vamos vencer o problema da superlotação das cadeias. O grande problema que nós temos é que o sistema é muito desequilibrado: nós temos cadeias superlotadas de gente que não devia lá estar e temos gente que lá devia estar, mas que não está. Anda aí muita gente nas ruas a nos ameaçar. Estamos, neste momento, a atravessar uma onde criminalidade. Eu, particularmente, fui assaltado por um individuo à porta de minha casa.
Embondeiro – O que é que falta nas faculdades de Direito (privadas e públicas), para que tenhamos juristas com conhecimento da realidade antropológica e sociológica do País?
JCT – O que nos falta é que nós devemos mudar a lógica de formação. O que tem perseguido a abertura das universidades privadas é a lógica do mercado: estamos numa economia de mercado e de iniciativa privada, portanto, se surge uma entidade que pretenda abrir uma faculdade privada o Estado autoriza. Só que o Estado não tem tido a capacidade de controlar a qualidade de formação, programas curriculares e a respectiva adequação desses programas à realidade moçambicana. O que acontece é que 90 a 100 por cento das universidades privadas, no caso concreto das faculdades de Direito, utilizam programas das universidades portugueses com as quais têm acordos de cooperação e transportam cá os seus programas com um corpo docente que não está preparado. Portanto, o Estado deve ter um papel regulador muito mais interveniente do que o que tem até agora. E deve-se apostar na qualidade de educação. E a qualidade de educação passa não só por dar competências técnicas, mas, também, por conferir aos formandos nas faculdades de direito conhecimentos antropológicos e sociológicos, o que temos feito, aqui, no CFJJ, para que uma pessoa que é colocada em Cuamba ou Chicualacualala tenha instrumentos para o meio onde está e para poder se articular nesse meio e satisfaça as necessidades e as aspirações das pessoas. Penso que se for uma pessoa que é formada à imagem e semelhança das universidades portuguesas, na base do Direito Português, e ser indicado a magistrado nesses meios comunitários, terá sempre dificuldades de perceber o meio em que se encontra. Ele pode ter dificuldades de estar a serviço da cidadania moçambicana.
Embondeiro - O que acha da Ordem de Advogados de Moçambique?
JCT – A Ordem dos Advogados tem que se libertar um pouco da concepção demasiado corporativista para se tornar num órgão que também se preocupa com questões sociais. A advogacia não pode ser uma profissão para ganhar dinheiro. Tem de ser uma profissão para fazer justiça! Quantas vezes nós ouvimos os advogados a reclamarem que são o terceiro pilar da justiça. Para serem terceiro sector da justiça devem ter preocupações sociais. Devem apoiar as pessoas mais carenciadas, pobres e aquelas pessoas que não têm condições para verem exactamente os seus direitos defendidos. E ai ela (ordem dos advogados) estará mais socializada.
Embondeiro – Qual é o quadro dos direitos humanos em Moçambique, antes e depois da Constituição de ’90?JCT – Em termos de direitos humanos, nomeadamente o direito à liberdade, à vida, à integridade física e outros que são da primeira geração, o Estado nem esses conseguiu assegurar aos cidadãos, quanto mais os de segunda geração: o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação. Sobre estes estamos muito longe de assegurar. Mas, fiquemos nos direitos de primeira geração: há muito cidadão que é vítima de abusos de autoridade, que não tem onde se dirigir ou apresentar a queixa ou ainda se apresentar queixa não como ver a sua pretensão ser encaminhada. Portanto, há um trabalho enorme por fazer. Acho que o Estado pode sair a ganhar se olhar as organizações da sociedade civil não como inimigas, mas como aliadas para a dignificação dos direitos humanos da cidadania. Muita gente não gosta da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos e do estilo de sua presidente, Maria Alice Mabota. Eu devo confessar que admiro o papel que a LDH desempenha, em particular de Alice Mabota, por ser uma mulher combativa, que enfrenta as coisas e que sempre vai a frente. Obviamente, nem sempre estou de acordo com o que ela diz e faz... nem tenho que estar. Mas, globalmente, a LDH tem tido um papel muito positiva. Não vejo a LDH como inimiga do Estado; pelo contrário, vejo o papel da LDH como aquele que chama a atenção do Estado, para melhorar o seu desempenho e a sua performance para que realmente o cidadão, quaisquer que seja, se sinta realmente cidadão.
Embondeiro - O que acha do exercício de cidadania em Moçambique?
JCT – Nós não podemos ser um país onde quem tem dinheiro, conhecimento e está próximo dos centros de decisão política e do poder e consiga resolver os seus problemas e quem é pobre por viver na zona periférica do poder não tem o mínimo para sobreviver. Não foi com esses ideais que compatriotas nossos se bateram. Todos devemos nos preocupar para que os direitos de cidadania se estendam a todos os cidadãos moçambicanos, independentemente da sua condição social. A mim, como cidadão moçambicano, custa-me muito – faço das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser branco. Quantas vezes vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo dizendo: “Quer atender a mim, mas este senhor está à minha frente. Quero ser atendido tal como os outros.
*A 15 de Junho de 2005, o juiz conselheiro do Tribunal Supremo e então director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, João Carlos Trindade, concedeu-me a supra-entrevista, quando estava a serviço do extinto jornal Embondeiro, em Maputo-Moçambique. Pela relevância de temáticas nela debatidas, julguei oportuno republicá-lo em forma electrónica, aqui, no bantulândia e não só. Aliás, paralelamente ao debate suscitado nalguns círculos moçambicanos, extratos da entrevista foram usados como fonte bibliográfica de um livro sobre racismo, publicado em Maputo (infelizmente, minha memória não se lembra do título).
São Paulo
Vésperas de natal de 2009
Josué Bila
3 comentários:
Caro Josué,
Parabéns pela republicação desta entrevista que considero de uma grande escola.
Foi um prazer para mim em conhecer mais um jurista moçambicano que pensa em justiça e em direitos humanos. Fiquei pensativo sobre o que João Carlos Trindade queria dizer sobre divisão de bens segundo as normas culturais locais se não prejudicaria as mulheres, mas ressalvada ficou a questão quando Trindade falou de respeito à Constituição da República. Porém, isso requer o domínio desta lei mãe por parte dos juízes comunitários e não só. Por exemplo, João Carlos Trindade deu um exemplo da proibição de sanções corporais pela Constituição da República, mas não são raras as vezes que ouvimos que um administrador distrital mandou chamboquear um cidadão.
Que há os que consideram a LDH inimiga do Estado está provado e temos assistido muitas intervenções nesse sentido. Mas não fosse a LDH como estaria a situação dos direitos humanos no país? Pelo menos há os que têm cautela evitando ser denunciados pela LDH em caso de violação de direitos humanos.
Um aspecto importante, quiçá importantíssimo nesta entrevista é a denúncia que o jurista faz em relação às vantagens baseadas na cor da pele (ser branco), no dinheiro, conhecimento e proximidade dos centros de decisão e de poder. Tenho muitas vezes chamado a atenção a esta questão que temos que discutir com frontalidade.
Refletindo, deixando a entrevista: me admira a sua flexibilidade cidadã e intelectual em discutir temas moçambicanos e não só... fica a minha estima por si...
Caro Josué
Obrigado pela sua admiração em mim. Claro, faço o meu dever de cidadania por amor à pátria. Aliás, é exactamente o que fazes, meu irmão.
Boas entradas para o ano 2010!
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