segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Josina Nhantumbo: “Direitos humanos existem dentro de peculiaridades culturais”

Antropóloga de verbo refinado e de competência profissional reconhecida. Sabe esgrimir idéias sobre o trilho convergente/divergente entre antropologia e direitos humanos. Aliás, essa é a razão por que o bantulândia convida-a, em entrevista, para deixar seus traços intelectuais. Seu nome é Josina Nhantumbo*. Na entrevista abaixo, ela alerta que os direitos humanos não devem ser vistos como antagónicos às peculiaridades culturais. “Porque dentro das peculiaridades culturais
existem direitos que muitas vezes até se cruzam com os universais... valorizemos os pontos comuns e negociemos mudanças nos pontos divergentes”. Josué Bila conduziu a entrevista...
Bantulândia - Que contributo o(a) antropólogo(a) pode dar ao crescente debate sobre direitos humanos em Moçambique?

Josina Nhantumbo (JN) - Moçambique é um país rico em diversidade cultural. Esta riqueza é muitas vezes vista como obstáculo para o discurso universalista dos Direitos Humanos. O papel de antropólogo é permitir que estes dois extremos se cruzem com passividade. Papel difícil na medida em que o debate de direitos humanos se apresenta aliado ao poder, o que leva a que o antropólogo tome uma posição em defesa da cultura.
Cabe ao antropólogo ver como a legislação dos direitos humanos vai enquadrando e dando forma às ordens normativas locais e como estas, por sua vez, resistem ou se apropriam da legislação universalizada. Isto significa assegurar a articulação entre a particularidade da cultura e a universalidade dos direitos humanos.

Bantulândia - Como Moçambique, enquanto Estado, pode sustentar a ética de direitos humanos, em face aos seus diversos sistemas culturais e morais (Moçambiques), que, às vezes, entram em choque com a universalidade de direitos humanos?

JN - Em Moçambique, o papel do Estado nesta matéria apresenta-se como fraco. Não existe um critério claro para a divulgação e sensibilização sobre os Direitos Humanos. Não se tem estado a dar a devida importância a este aspecto.
Muitas vezes, este discurso aparece ligado a crimes. Temos a Liga Moçambicana de Direitos Humanos, que embora esteja a realizar muitas actividades, as mais divulgadas são aquelas que envolvem crimes. Para não falar de outras organizações que trabalham nesta matéria e não têm tido o espaço devido.
O que tem acontecido no nosso país são campanhas, de quando em vez. E ao falar de campanhas, tratamos apenas de direitos de grupos específicos, neste caso concreto fala-se mais de direitos da mulher e criança. Tudo bem que sejam desfavorecidos. Mas, o facto é que, mesmo que o homem “discrimine” a mulher, não é pelo conhecimento dos seus direitos, isso resulta das “ordens normativas locais”.
Então, talvez precise conhecer perfeitamente os seus direitos e deveres para mudar de atitude. Ou seja, nem são só os homens que discriminam, é a sociedade em si; então, toda a sociedade precisa conhecer os seus direitos/deveres.
Para terminar, permita-me dizer que a lei deve ser vista como tendo um carácter pedagógico, para isso deve ser divulgada como tal. Pela sua circulação pode inaugurar novos estilos de moralidade e desenvolver sensibilidades éticas desconhecidas. A lei deve ser publicitada por forma a instalar novas sensibilidades e introduzir mudanças na moral vigente. Mas, o que acontece, neste momento, é que a lei aparece como inimiga do povo, apenas para criminalizar.


Bantulândia - Em nossa fase contemporânea, o que melhor deve comandar a sociedade moçambicana: “Universalidade de direitos humanos” ou “Peculiaridades culturais”?
JN - Eu acho que não devemos colocar isso como extremos. Porque dentro das peculiaridades culturais existem direitos que muitas vezes até se cruzam com os universais, apenas se manifestam de formas diferentes. Ou seja, os direitos humanos existem dentro de peculiaridades culturais. Nem sempre existe conflito entre o local e o universal, pois então, valorizemos os pontos comuns e negociemos mudanças nos pontos divergentes. A divulgação da lei e a sensibilização para o seu seguimento podem contribuir para a aliança entre o local e o universal.
Muitas vezes, o discurso dos direitos humanos é visto como uma força que pretende tornar homogéneo a sociedade global; porém, sabemos que a partir deste discurso, tem-se estado a afirmar diversas minorias sócio-culturais em todo o mundo. Nesta óptica, retira-se a visão simplesmente de dominação. Isto significa dizer que o universal e o local bem partilhados podem trazer benefícios para as comunidades. Desde que sejam reforçadas as capacidades de diálogo para as normas locais, para as peculiaridades culturais.


Bantulândia - O direito dos direitos humanos aponta, por exemplo, a não agressão física à mulher por parte de seu cônjuge, porque caso assim o faça pode ser incriminado pela Justiça.
- De que forma podemos reduzir as incriminações/tribunalizações, em favor de educação em direitos humanos aos moçambicanos?

JN - “Agora dizem que já nem posso bater na minha própria mulher porque se não vou preso...”. Esta é uma passagem de uma peça teatral espontânea, passada numa sessão de capacitação sobre violência doméstica. Isso quer dizer que só deixam de bater, não que tenham percebido algo ligado a direitos/deveres humanos. Então, só não bate porque dizem para deixar de fazê-lo. Isto mostra que a questão dos direitos é tomada como punitiva e não de forma educativa.
Primeiro, é importante que os Homens conheçam os seus direitos, independentemente do sexo, idade e etc. Devemos conhecer os direitos humanos como uma forma de relações sociais, onde cada pessoa tem deveres e direitos para assegurar uma harmonia social. O que acontece, agora, é que parece que uns têm direito e outros não os têm. É uma atitude de remediar.
Segundo, mudança de consciência não deve ter prazos muito curtos. Não podemos tomar isto como políticas de assimilação, em que as pessoas fazem ou deixam de fazer para serem bem vistas ou o que seja politicamente correcto.
Só reduziremos as incriminações quando deixarmos de colocar prazos curtos para a mudança de consciência. Trabalharmos para harmonizar o local e o global. Porque a tendência de erradicar o local e implementar o global resulta em resistências, o que faz com que coloquemos a criminalização em primeiro plano. Quando, a meu ver, a questão criminal deveria ser complementar.

Bantulândia
Itálico - Antropologicamente, como explica o facto de as mulheres parlamentares, apesar de constituírem 40% de deputados da Assembléia da República, demonstrarem fraqueza na apresentação de propostas legais sobre direitos humanos?
JN - Primeiro, digo que todos os parlamentares não transpiram liberdade de expressão. E poucos têm mostrado domínio sobre os direitos humanos.
Indo directo ao assunto, as mulheres parlamentares são mulheres do nosso país. Para além do problema geral de falta de liberdade de expressão e fraco domínio sobre direitos humanos no exercício da actividade política, elas sofrem pelo facto de serem mulheres. Elas transmitem o que são de facto. O que muda é que ganham certa independência económica, inerente ao facto de serem deputadas e se tornam arrogantes.
Seria importante que as mulheres parlamentares tivessem formações sobre direitos humanos e participação política. Mas, isso não resolveria, pois elas não constituem um grupo externo à sociedade. Por isso, elas podem ser formadas ao seu nível, mas toda a sociedade deve estar preparada para aceitá-las como deputadas e como detentoras do poder político.


Bantulândia - Qual tem sido o impacto sócio-cultural de visibilização das mulheres nos media e alta esfera de administração pública?
JN - Isso tem estado a contribuir positivamente porque num momento em que se pretende maior participação da mulher, as que integram meios de tomada de decisão servem de referências.


Bantulândia - Quero insistir em uma pergunta que fi-la à socióloga Conceição Osório: Em Moçambique, há um tipo de excesso de dominação masculina velada que, às vezes, inibe a liberdade de expressão e de imprensa das mulheres.
- Como tem visto esta inibição desta liberdade na Imprensa?

JN - Bem, na nossa sociedade o homem só é ‘julgado’ nos meios públicos, o que o torna de certa forma livre. Mas com a mulher é diferente; ela é ‘julgada’ a todos os níveis. A mulher deve-se controlar muito mais. A mulher deve evitar errar, enquanto o homem aprende errando.

Bantulândia - Mudando um pouco de assunto. Como é que o governo Guebuza respeitou e protegeu os direitos humanos?
JN - Este Governo foi muito punitivo, ou seja, se de certa forma havia algo para mudar tinha que ser por medo de uma punição. Agora, não sei se o problema é com o Governo ou com o Povo... Mas o Governo é do povo... Exemplo clarividente disso são as excessivas expulsões de funcionários públicos.
Adicionalmente, as acções do governo não têm a perspectiva de direito. Só um exemplo: no nosso país, quando se fala de combate à fome, não se está a falar de direito à alimentação. São assuntos diferentes; no primeiro caso as pessoas só se alimentam para não morrerem “objectivamente” de fome. Mas não estamos preocupados com o quando, o que e como é que comem.


*Josina Aurora Nhantumbo (jonhantumbo@gmail.com), 33, nasceu em Xai-Xai, província de Gaza. É licenciada em Antropologia, desde 2006, pela Universidade Eduardo Mondlane. Desde o período de formação, participa em formações e pesquisas sociais, concretamente para área de saúde pública e género que actualmente integram questões sobre mudanças climáticas.

Começou a trabalhar em 1997, na Direcção Provincial da Mulher e da Acção Social, na área administrativa. Durante a formação em Maputo, mudou de área para assistência social às pessoas portadoras de deficiência, com mais enfoque para a deficiência mental. Depois da licenciatura, em 2006, na cidade de Pemba, trabalhou na área de desenvolvimento da mulher e promoção da equidade de gênero e na área de integração de aspectos de género no processo de descentralização e governação local. Neste momento, coordena Iniciativas de Desenvolvimento de Erati-Nampula, um programa da Actionaid-Mozambique.

1 comentário:

OTONIEL AJALA DOURADO disse...

SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ: UM GENOCÍDIO 72 ANOS NA IMPUNIDADE!




No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.



A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como feras enlouquecidas, como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.


Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que sejam obrigados a informar a localização exata da COVA COLETIVA onde esconderam os corpos dos camponeses católicos assassinados na ação militar de 1937.


Vale lembrar que a Universidade Regional do Cariri – URCA, poderia utilizar sua tecnologia avançada e pessoal qualificado, para, através da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa – PRPGP, do Grupo de Pesquisa Chapada do Araripe – GPCA e do Laboratório de Pesquisa Paleontológica – LPPU encontrar a cova coletiva, uma vez que pelas informações populares, ela estaria situada em algum lugar da MATA DOS CAVALOS, em cima da Serra do Araripe.


Frisa-se também que a Universidade Federal do Ceará – UFC, no início de 2009 enviou pessoal para auxiliar nas buscas dos restos dos corpos dos guerrilheiros mortos no ARAGUAIA, esquecendo-se de procurar na CHAPADA DO ARRARIPE, interior do Ceará, uma COVA COM 1000 camponeses.


Então por que razão as autoridades não procuram a COVA COLETIVA das vítimas do SÍTIO CALDEIRÃO? Seria descaso ou discriminação por serem “meros nordestinos católicos”?


Diante disto aproveitamos a oportunidade para pedir o apoio nesta luta, à todos os cidadãos de bem, no sentido de divulgar o CRIME PERMANENTE praticado contra os habitantes do SÍTIO CALDEIRÃO, bem como, o direito das vítimas serem encontradas e enterradas com dignidade, para que não fiquem para sempre esquecidas em alguma cova coletiva na CHAPADA DO ARARIPE.


Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – (85) 8613.1197
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br