segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Da cidadania diaspórica ao nacionalismo bacoco


O debate de idéias, em Moçambique – meu país de única e exclusiva nacionalidade -, parece ser vítima do novo e lento processo de socialização cívica e intelectual, fruto de uma cidadania historicamente tímida e de um nacionalismo algo improdutivo. Assim, no país africano, perfilam e superabundam multifacetados nacionalismos e cidadanias. Tenho, por ora, o prazer de vos apresentar apenas uma de cada: cidadania diaspórica e nacionalismo bacoco.


Cidadania diaspórica e nacionalismo bacocoAntes de entrar em possíveis pormenores, permitam-me pensar que cidadania diaspórica é a capacidade que os cidadãos nacionais, que se encontram a viver fora (de Moçambique) por motivos vários, têm de prestar atenção à vida do país, visando debater idéias e emitir seus pareceres para a justiça social e a consequente materialização dos direitos humanos, usando múltiplas contribuições, e-mails grupais, abaixo-assinados, blogues, jornais e demais canais.

Contrariamente, o nacionalismo bacoco é caracterizado pela visão preconceituosa e desqualificadora das idéias discutidas pela cidadania diaspórica, alegadamente por os seus debatedores e proponentes estarem viciados da urbanidade e experiências cidadãs dos países onde actualmente vivem, bem diferentes das de Moçambique. O nacionalismo bacoco não precisa reunir elementos filosófico-intelectuais para debater e refutar os posicionamentos da cidadania diaspórica; mas sim, basta-lhe a sua linguagem reducionista e provinciano-satírica, esvaziando o sentido real da problematização dos temas. Mais abaixo, colocarei três exemplos do dia.

Ainda descrevendo
Um dos defeitos do nacionalismo bacoco é perpetuar a idéia de que um moçambicano residindo além-fronteiras só exige carácter ético e exemplar das autoridades do Estado no que concerne à justiça social e direitos humanos, por pura emoção diaspórica de estar a viver entre “aranha-céus sociais, económicos, culturais e políticos”, longe de sua realidade-mãe. Perpetua-se a idéia de que o objectivo do debatedor e proponente de um pacto de direitos humanos e justiça social é apenas falacioso, objectivando fazer um copy-and-past da realidade actualmente vivida por ele.

Por assim dizer, o nacionalismo bacoco constitui um perigo para a convivência das opiniões diferentes e divergentes, marcando com cicatrizes os direitos de cidadania de expressão e, quiçá, de imprensa – isto tudo cria um mal-estar à saúde dos gémios universais: democracia e direitos humanos.

Infelizmente, o espírito taxador, os adjectivos e substantivos depreciativos e a sátira institucional ao debate trazido pela cidadania diaspórica está na moda. Estes trigémios estão assentes no pensamento de que a cidadania diaspórica está, por exemplo, propondo uma política pública ao direito humano à educação, saúde, habitação e demais direitos e temas sociais, sob influência de contextos potencialmente inigualáveis com os de Moçambique, como se os moçambicanos fossem uma ilha destinada aos rancores da nudez social. Em momento algum, os cidadãos moçambicanos na diáspora impercebem a diferença entre as sociedades onde vivem e Moçambique, relativamente ao tempo de construção do Estado e organização de sua estrutura política, económica, social e cultural. Porém, sem refutar outras causas empobrecedoras de Moçambique, têm acesso aos documentos de organismos vários – Centro de Integridade Pública, Mecanismo Africano de Revisão de Pares (órgão da União Africana) e Transparência Internacional, só para citar alguns - sobre a crescente exclusão social e intransparência na gestão da coisa pública. Posto isto, sugere-se que com uma excelente aplicação dos recursos e uma cidadania inclusiva, muito provavelmente chegaríamos aos patamares sociais, económicos e políticos em pouco tempo.

O debate da cidadania diaspórica é relativa à construção de um Moçambique arraigado em valores de ética e gestão transparente da coisa pública; e que o pouco e o muito dos recursos do Estado sejam canalizados aos potenciais sujeitos de direitos humanos: os moçambicanos. Infelizmente, não faltam ataques do nacionalismo bacoco à cidadania diaspórica, minimizando algumas das violações dos direitos humanos ou outro problema debatido, apenas porque quem as denuncia ou escreve está fora da realidade-mãe. Outra infelicidade do nacionalismo bacoco é desconhecer ou esquecer o passado recente da cidadania diaspórica, que foi debatedora de questões nacionais dentro de Moçambique - da política à cultura, passando pela economia, desembocando aos direitos humanos. Ou seja, a cidadania diaspórica está apenas a dar continuidade do que já vinha fazendo dentro de Moçambique. Lá regressará, quando o tempo proposto e previsto terminar, ainda que reconheça as mazelas do clímax social por qual passará ao desembarcar em qualquer aeroporto que se encontra no espaço onde Moçambique se localiza.

A cidadania diaspórica, ao propor o direito dos direitos humanos, fá-lo com o intuito de fazer perceber às autoridades estatais e a sociedade, no seu todo, que Moçambique precisa de políticas públicas, assentes em direitos humanos e transparência pública, para a materialização dos objectivos de democracia e justiça social, em resposta ao instituído na nossa Carta magna. Aliás, vale lembrar que essa é a vontade ética da comunidade internacional, acoplando que a primazia da dignidade humana dos moçambicanos é defendida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, do qual se inspirou a nossa Constituição contemporânea.

Agora vos apresento três exemplos-trechos do que apelido de nacionalismo bacoco.

Sabino Matsinhe e Júlio Mutisse, depois de terem lido o meu artigo intitulado “direito à residência: um panfleto constitucional ilusório?”, publicado e comentado aqui http://comunidademocambicana.blogspot.com/2009/07/direito-residencia-um-panfleto.html, escrevem o seguinte ao bloguista Reflectindo:

1. Júlio Mutisse disse... “O que questionaria ao Josué Bila que está no Brasil que experiências pode nos dar da realização deste desiderato a partir do ponto onde observa o país. É que, é muitas vezes fácil lançar estas coisas de LÁ FORA, do que olhar a volta onde estamos e, com base nas experiências desse local, sugerirmos caminhos possíveis pra o nosso país.Reflectindo, sei que é um homem viajado e preocupado com o país, dentro da conjuntura conhecida, inclusive com ameaças de doadores de diminuírem a ajuda ao país (ajuda de que o país continua a depender em grande medida), que alternativas ou condições julga existirem para que o país ponha em prática uma política de habitação? E ao pôr em prática essa política, o que é que se deve sacrificar: a saúde? a educação? (que são as prioridades)”.
2. Sabino Matsinhe disse: “Reflectindo, o ideal de habitação digna que pinta no seu texto julga ser susceptível de atingir em Moçambique ou em África hoje? Não estará a confundir Moçambique e África com o país nórdico onde vive?Pensa que os "cidadãos" moçambicanos pagam suficiente imposto para capacitar o "seu" Estado a cumprir o "sonho" que Reflectindo tão magistralmente pinta?Isto é o que dá viver fora do país sem ligações profundas com a pátria... Começã-se a fazer exigências incomportáveis para o país real.Iremos lá chegar, caro Reflectindo. Só que não nesta nossa geração. E não será por causa dos que "estão no poder", como Maria Helena sugere. Este país tem distorções estruturais que não serão resolvidas com mera demagogia”.
Leiam também o que Arão Valoi escreve aqui http://br.dir.groups.yahoo.com/group/mocambiqueonline/message/11181, respondendo a um meu artigo, que o escrevi e publicado dentro de Moçambique, no jornal ZAMBEZE, Dhnet e blog de Milton Machel, intitulado “Do jornalismo provinciano e faz-tudo ao jornalismo responsável”. Um trecho que me interessa, para este propósito, é este:
3. “O Josué acabou "refugiando- se" ao Brasil, donde começa a mandar estas bombas, justamente porque viu que cá os problemas eram enormes e se calhar o mais correcto, como não entendesse a sua própria realidade, fosse deixar”.
Como muito bem disse, o referido texto publiquei-o em Moçambique, antes de vir ao Brasil, pela segunda vez consecutiva; porém, releiam para perceber a interpretação que se dá quando supostamente um texto foi escrito na diáspora.

Fechando, mas abrindo...Infelizmente, não raras vezes, o nacionalismo bacoco satiriza e ridiculariza determinadas formas de pensar por somente o debate vir da diáspora. Se a cidadania diaspórica exige do Estado o direito à habitação condigna e outros direitos, por exemplo, para que os moçambicanos vivam dentro de “mínimos direitos”, então, a proposta e a indagação são revolvidas negativamente, deixando-se a oportunidade de debater expositiva e intelectualmente, com argumentos cívicos e filosóficos, fazedores da elegância da esfera pública.
Apesar do fechamento do nacionalismo bacoco em debater o que a cidadania diaspórica propõe, esta, entretanto, deve debater continuamente, em nome de justiça social e direitos humanos, e lutar para que a “República Moral”, sonhada por Emmanuel de Kant, seja o alvo de todos os moçambicanos de, em e para Moçambique, independentemente de viverem fora dele ou não.

P.S. 1- Permitam-me terminar à moda do camarada, intelectual e ideólogo da FRELIMO, Sérgio Vieira: um abraço aos democratas!
2 - Nutro um grande respeito e consideração pela cidadania de idéias de Mutisse e Valói. Sei que ao responderem estas minhas indignações racionais, poderão esboçar bons argumentos. Quanto a Matsinhe nada posso dizer; desconheço a sua matriz racional.


*Dedico este texto aos filhos de três meus amigos (Matola, Celso e Salema, todos jornalistas), nomeadamente Daniela, Elbe e Ian. Por razões afectivas, não posso esquecer dos filhinhos das minhas irmãs: Gerson, Claida e Francisca. Um dia, estas crianças poderão viajar para fora de Moçambique - e meu sonho é que debatam idéias longe da realidade-mãe, para o nosso bem cidadão e social...
São Paulo, 30 de Agosto de 2009
Josué Bila

6 comentários:

Júlio Mutisse disse...

Meu caro amigo Josué, obrigado por esta abordagem interessante sobre forma como "debatemos" em Moçambique.

Eu acho que o Josué devia falar por si; afirmações "seguras" e absolutistas do género "Em momento algum, os cidadãos moçambicanos na diáspora impercebem a diferença entre as sociedades onde vivem e Moçambique" podem lhe levar para o mato pois, não poucas vezes, muitos de vocês que estão fora, emocionam-se com as coisas boas que vêm por ai e põem-se a torpedear o país e os seus dirigentes no sentido destes porem em prática semelhantes coisas, muitas vezes sem terem em conta a realidade do país.

O facto de estarem longe de casa, de facto, não vos retira o direito de opinarem, de participarem na busca de soluções para os muitos problemas do país. Não há nem deve haver momentos em que a cidadania e os direitos inerentes se interrompem. Não há. MAs sejamos realistas.

Indo para o trecho que cita meu, não percebi o juízo de valor que faz dele. É limitador do seu direito de opinar? É te ofensivo de alguma forma? Torpedea os cidadãos moçambicanos que estão fora? Coloca-o na mesma "panela" com os outros que cita?

Para sermos úteis no debate de ideias temos que apontar os problemas e propor possíveis soluções. Ao fazer te aquela proposta era para veres daí do país das FAVELAS, como é que o Brasil ou outro país latino-americano tratou da questão que coloca que possa ser útil a Moçambique. Como é que o Brasil e que sentido apontam as políticas públicas do Brasil sobre a habitação e, dentro das limitações conhecidas do nosso Estado, tais experiências podem ser úteis a Moçambique?

O que acontece de muitos de vocês que estão fora, é que pensam, não poucas vezes, que os vossos ditos são ininterpeláveis; parece que vocês debitam saber cuja autoridade deriva de onde estão :fora do país.

No que me toca, continuarei a interpelar vos e pedir que nos tragam as experiências de onde estão para a solução dos problemas do país.

Quando sentarmos e pensarmos as políticas habitacionais em Moçambique, procuraremos experiências de países que nos são próximos, cultural, historica e economicamente e, se vocês daí poderem ir dando esses subsídios ajudariam mais do que simplesmente ir dizendo o que falta e o que não há. Disso, nós cá, já sabemos.

Uso o vosso saber e o conhecimento que (ainda) têm do país e a experiência de onde estão (também) para nos ajudar a dar o salto.

bantulândia disse...

Mano Mutisse,

Muito obrigado pela sua intervencão!!! Já o esperava com esse tempero...

Porém, continuo ficando o pé: temos, em Mocambique, um tipo de nacionalismo bacoco.

Abrs,Josué Bila

Júlio Mutisse disse...

Problemas no debate não se verificam apenas com relação à forma como interpelamos os que estão fora. Existem mesmo entre nós que estamos cá dentro.

É por isso que muitos amigos, incluindo gente que está fora, bate-se por uma esfera pública onde se discutam as ideias de cada um independentemente de onde essa pessoa possa estar, do partido a que pertence ou, eventualmente, da ementa do jantar no dia anterior.

Ainda bem que esperava pela minha reacção; ao reagir coloquei-lhe algumas perguntas das quais espero resposta até para perceber, de todo o seu post, e o contexto em que um dito meu em determinado debate foi chamado para aqui.

A bem do debate não podemos fugir a qualquer questão que nos é colocada. Estou ciente de que, em determinado momento, chamei a colação a sua condição de emigrante mas, entenda, nunca para pôr em causa um argumento seu; os pontos de onde observamos o país não são meros espaços de permanência/residência; são espaços de experiências. Experiências que devidamente contextualizadas podem ser úteis ao país.

Levarão sempre porrada se, de onde estão, apenas se dedicarem a apontar problemas como se tivessem inventado a roda e se esquecerem de propor soluções até com base nas vossas novas experiências nos países de acolhimento.

JOSÉ disse...

Josué, parabéns pela lucidez e frontalidade na abordagem a um tema tão sensível.
Em Moçambique há mesmo um nacionalismo bacoco e retrógrado!

bantulândia disse...

José Matos,

Continuo afirmando, sim, que temos nacionalismo bacoco em Mocambique...Ainda que alguns podem pensar que, como se espera, isso é ataque da cidadania diaspórica...
Parábens por ampliares o debate!!!

Abrs, JB

Nkutumula disse...

Caro Josué,

O seu texto é interessante mas, sinceramente, penso que seria prudente avançar com propostas concretas, com cálculos macro-económicos à mistura, para que percebamos porque é que se chegou à conclusão de que é possível que cada moçambicano, sem que a maior parte deles pague impostos, tenha uma casa.

Seria prudente que dissesses de onde viria o dinheiro para a construção das casas enquanto efectivação do direito constitucional à habitação.

Estive em Cape-Town há duas semanas numa conferência internacional sobre “Direito à habitação como um direito fundamental”. Todos os presentes foram unânimes: em países dependentes de financiamento externo para o seu orçamento, se os cidadãos não pagarem impostos este direito não será para todos, mas para alguns apenas.

Qual é a fórmula avançada para que em Moçambique todos tenhamos casa? Estou a construir a minha casa mas talvez eu devesse axigir ao Estado para construir uma para mim... A baixo custo, ou a custo zero.

Um abraço