sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guebuza igual a Samora e Chissano em termos de discurso*

 Foto: Saharan vibe

- Combate à corrupção, ao deixa-andar e ao nepotismo são alguns dos denominadores comuns

Nos anos das independências africanas, Moçambique teve o seu primeiro governo de transição em 1974. O objectivo era que a administração colonial portuguesa passasse o poder político aos moçambicanos até o ano da independência nacional, que seria proclamada em 1975. Nesse período e nos anos subsequentes, o nacionalismo evidenciado pelos discursos sobre a mudança da estrutura política, económica, social e cultural, proferidos pelos líderes da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), ganharam terreno e
eco popular. Porém, não surtiram efeitos. Os governos pós-independência nacionais não conseguiram que suas pretensões de organização do sector público para o desenvolvimento se transformassem em realidade.


Primeira mancha
Faz mais de trinta anos que o poder está nas mãos do partido Frelimo e, por extensão, de moçambicanos, depois de ter escapado à força das mãos da administração colonial portuguesa.
A 20 de Setembro de 1974, e pela primeira vez, os moçambicanos ouviram a voz do então presidente da Frelimo, Samora Machel, através da Rádio Moçambique, anteriormente Rádio Clube. O discurso em grande parte se referiu à posse do Governo de Transição, o que significou a transferência progressiva de poderes do Estado Português para a Frelimo.

Discurso do partido Frelimo, intitulado Samora Machel: A Luta Contra o Subdesenvolvimento, editado em 1983, escreve que a independência de Moçambique destinava-se a liquidar a fome, a nudez e a falta de alojamento, bem como exigia o combate ao consumo supérfluo e ao esbanjamento.

A Frelimo sinalizou ainda aos moçambicanos e à comunidade internacional que a independência significava trabalho para o aumento da produção e produtividade. Por outro lado, permitia acabar com o desequilíbrio entre a cidade e o campo, definindo a agricultura como base de desenvolvimento e a indústria como factor dinamizador do desenvolvimento.

A essa altura, a Frelimo queixava-se de ter herdado uma situação difícil e grave do ponto de vista social, económico, financeiro e cultural, resultante de séculos de opressão e pilhagem colonial....
Para contornar tal situação difícil e grave, Machel dizia, entre outras coisas, que havia necessidade e exigência de os dirigentes, no seu comportamento, representarem os sacrifícios consentidos pelas massas.

No mesmo documento se lê: o poder, as facilidades que rodeiam os governantes podem corromper facilmente o homem mais firme. Por isso queremos que vivam modestamente e com o povo, não façam da tarefa recebida um privilégio e um meio de acumular bens e distribuir favores.

A corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca de conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade e em particular das preferências nos empregos aos seus familiares, amigos ou à gente da sua região fazem parte do sistema que estamos a destruir, frisara Machel.

Estas intenções todas não passaram de politiquices de um grupo entusiasmado por ter derrotado o colonialismo. Cinco anos depois, senão seis, a Frelimo já andava frustrada com o seu próprio desempenho, razão pela qual, mais uma vez, adoptou estratégias de combate aos males que, quando tomara o poder pela primeira vez, prometera combater sem tréguas.

Sucedeu, entretanto, que, de 1980 a 1990, a Frelimo desencadeou, num documento, o que chamou de Ofensiva Política e Organizacional, que visava, segundo a Sessão Alargada (ampliada) do Conselho de Ministros, realizada em 6 e 7 de Fevereiro de 1980, criar as condições para que possamos fazer, efectivamente, da década de 80, a década da vitória sobre o subdesenvolvimento. Para chegar a esse objectivo, a Frelimo, identificara o que, até hoje, não consegue atacar no sector público, ou seja, a corrupção, o nepotismo, o burocratismo, parasitismo, espírito de rotina e todas as formas de divisionismo.

Deixa-andar reconhecido pela Frelimo em 1985 Nos documentos supracitados, a Frelimo afirmava categoricamente que os males no seio do aparelho do Estado eram produto da influência da teoria e da prática pequeno-burguesas do regime colonial-fascista português. Em seus discursos ideológicos, foi usando como alvo os ex-colonialistas para encobrir a sua incapacidade de gestão de Moçambique.

Enquanto proferia esses discursos, o partido internamente ia se deixando corroer por hábitos danosos ao Estado, pois, tal como observa Brazão Mazula, no seu livro Educação, Cultura e Ideologia 1975-1985, na medida em que os interesses das elites dirigentes se foram distanciando uns dos outros, entre 1977 e 1983, ocorria ao mesmo tempo o enfraquecimento constante do partido, em relação ao próprio Estado. O ex-professor universitário e jornalista Aquino de Bragança também se referiu a este desmoronamento moral e silencioso do partido governamental.

Assim, a concretização na realidade dos planos alardeados pelos discursos ficou adiada. Nesse período de entusiasmo ideológico, ainda de acordo com Mazula, novas classes se constituem no aparelho de Estado e do partido, na base de privilégios políticos e económicas em relação ao conjunto da sociedade.

Nessas condições, as novas classes foram alargando o seu campo de acção, e praticaram a corrupção e o assalto, sem precedentes, aos bens públicos. Essas atitudes e comportamentos da classe dirigente foram, evidentemente, inspirando, na forma de ser e de pensar, quase todos os sectores sociais e cidadãos moçambicanos.

Mazula, na mesma publicação, apoiando-se em Aquino de Bragança, revela que uma das grandes crises da Frelimo foi que, apesar de gestos de autocrítica, evidenciados nos discursos presidenciais e de as intenções denotarem o desejo formal de estabelecer o poder popular, elas nunca foram concretizadas. De acordo com De Braganca, essa crise se traduziu sempre pela não coincidência entre as intenções e a realidade.

Não só Mazula e Bragança fizeram críticas. Na décima - quarta sessão da então Assembleia Popular da República de Moçambique, em Dezembro de 1985, a ex-ministra da Educação, Graça Machel, afirmava que cresce uma certa falta de confiança do povo para com o Governo, assente nas dificuldades enfrentadas. Ela propôs, entretanto, que o Governo prestasse contas à Assembleia Popular. Esta sugestão seria de concretização quase impossível, porque, de 1977 a 1990, Moçambique adoptou o regime de partido único. Desta maneira, era difícil que os parlamentares fiscalizassem os governantes, pois, tanto o primeiro grupo, bem como o segundo, pertenciam ao mesmo poder político-partidário instituído desde 1974.

No mesmo debate, segundo notas da famosa revista Tempo, os camaradas da Frelimo envolveram-se num levantamento de problemas que grassavam no país, por um lado, e que, por outro, depreciavam a moral e disciplina do partido. O ex-ministro da Segurança e ex-deputado Sérgio Vieira seguiu Graça Machel, referindo que, se as comissões da Assembleia Popular funcionassem, ocorreria a fiscalização sobre o aparelho do Estado, questão ainda levantada por Samora Machel.

Na mesma altura, outra constatação é feita por Alberto Chipande, ex-deputado e ex-ministro da Defesa, nos seguintes termos: existe o espírito de deixa-andar (termo esse ressuscitado e usado pelo actual presidente moçambicano, Armando Guebuza) que se apoderou de vários responsáveis, que consiste no não funcionamento dos ministérios infiltrados de candogueiros (dilapidadores e preguiçosos), enfraquecendo o trabalho político que aí se desenvolve.
Chipande, referindo-se a orientações do IV Congresso que não foram cumpridas, reconheceu, categórico: "nós conduzimos mal o processo".

Segunda mancha
 Joaquim Chissano, ex-presidente moçambicanoFoto: Economico.sapo.pt
Joaquim Chissano foi nomeado, pelo Comité Central da Frelimo, presidente da República de Moçambique, em novembro de 1986, depois do assassinato de Samora Machel, em Nbunzini, território sul-africano, a 19 de outubro de 1986, em circunstâncias, até aqui, não esclarecidas pelas autoridades moçambicanas.

Em 1987, Moçambique introduziu o Programa de Reabilitação Económica (PRE) e três anos depois aprovou a Constituição de 1990. Esta advoga a chamada economia de mercado e iniciativa privada e alguns requisitos do dito Estado de Direito democrático.

De 1987 até hoje, verificou-se que o governo da Frelimo permitiu, em grande medida, que uma minoria tivesse riqueza ostensiva e não criada na base de trabalho e honestidade, num momento em que os valores éticos e morais das elites políticas da Frelimo fracassaram e se tornaram um absurdo, em particular nas zonas urbanas.

Em 1990, um discurso crítico foi proferido por Mário Machungo, então primeiro-ministro, assinalando a grande onda de desvios de riqueza nacional para caprichos de nepotismo, privilégio e ostentação exagerada e grosseira da tal minoria, indicando as elites do partido Frelimo, a que ele pertence.

Certos grupos ou indivíduos do meio político e económico ostentam, nas grandes cidades, uma riqueza requintada, de Primeiro Mundo, inexplicável na situação económica do país, frisou Machungo, citado pela revista Tempo, em 1990.

Essas denúncias de Machungo desembocam no antagonismo entre o que o poder proclama para servir de normas sociais e o que grande parte dos indivíduos ligados ao próprio faz. Há uma grande distância entre os verbos, substantivos e adjectivos proferidos em prol do progresso humano e a realidade vivida dentro do país.

Em 2001, o ex-chefe de Estado moçambicano, Joaquim Chissano, lançou a Estratégia Global da Reforma do Sector Público 2001-2011, em Maputo . Entre tantos enfoques governamentais, o documento trata da corrupção no sector público e em de outros actos corrosivos ao Estado.

Numa das passagens, o discurso de Chissano diz: A grande corrupção desvia, em benefício de poucos, os recursos que poderiam gerar riqueza e minimizar os efeitos da pobreza absoluta. Prejudica a imagem do país e compromete a credibilidade do nosso Estado a nível internacional. Toda e qualquer manifestação do fenómeno da corrupção deve ser combatida com igual vigor e combatida com indignação, intransigência e intolerância.

Todo este aparato de discursos presidenciais não foi seguido de exemplos. Com sinais a olho nu de desvios de fundos - pelos diversos altos quadros dirigentes do Estado, nomeados por ele -, Chissano, com o todo poder que as disposições jurídicas e normativas do Estado lhe conferiam, não foi capaz de sair da letra para a acção. Um exemplo flagrante, de 2004 - um episódio em que num país normal deveriam ter ocorrido, no mínimo, medidas correctivas ou disciplinares, senão mesmo uma exoneração - é o caso referente às bolsas de estudo alegadamente destinadas aos funcionários do Ministério da Educação, que foram desviadas para os familiares do ex-ministro da Educação e ex-membro da Comissão Política do partido Frelimo, Alcido Ngwenha.

O documento lançado por Chissano acrescenta: todo o esforço empreendido no sentido de transformar o sector público num instrumento efectivo de melhoria da qualidade de vida da população, será inútil se não for atacado o fenómeno da corrupção com rigor e com todas as armas disponíveis.

Uma outra série de discursos está contida no Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), 2001-2005. No tocante ao combate à corrupção, nepotismo, subornos e outros males dessa raiz o documento apresenta intenções governamentais igualmente não cumpridas. O governo de Chissano prometeu, sem cumprir, no último quinquénio, a barragem à propagação da corrupção, sua redução substancial e controle da conduta dos agentes das instituições públicas... e sancionamento de actos de corrupção.

E, agora, Guebuza, que fazer?
 Foto: Herald.co.zw
11 horas e 15 minutos. 2 de Fevereiro de 2005. Maputo, Moçambique. Armando Emílio Guebuza tomou posse como presidente da República, depois de ele e o seu partido (Frelimo) terem ganhado eleições, presidenciais e legislativas. Do minuto 15 ao 16, jurava - diante do presidente do Conselho Constitucional, Ruy Baltazar, dos presentes e perante Moçambique e comunidade a internacional respeitar a Constituição, dedicar as suas energias em prol do desenvolvimento de Moçambique, de seus cidadãos, e respeitar os direitos humanos. Na cerimónia estavam presentes altas autoridades, o corpo diplomático, chefes de Estados e de governo pelo mundo afora, além de populares e membros e simpatizantes do partido no Poder.

Um ano depois de Guebuza assumir a chefia de Estado moçambicano, tem combatido a corrupção apenas por meio de discursos. Renova o que os seus predecessores se habituaram a proferir para os moçambicanos há trinta anos.

Por ocasião de sua investidura, Guebuza igualmente falou, entre tantas coisas, do burocratismo, do espírito de deixa-andar, do crime e da corrupção e das doenças endémicas, como grandes obstáculos a serem transpostos, para que a marcha rumo ao desenvolvimento seja livre e desimpedida.

Estes discursos são os mesmos, desde Machel, passando por Chissano. Agora, quais tecnologias Guebuza (e seu governo) usará para transformá-los em actos nos cinco anos do seu mandato, se em 30 anos os seus co-partidários não conseguiram passar do discurso à acção?
*Publiquei este texto pela primeira vez em fevereiro de 2005, no extinto jornal Embondeiro, quando por lá prestei o meu micro saber jornalístico. Também foi publicado no site da caros amigos nos meses de julho/agosto de 2006

1 comentário:

tongai disse...

o discursso de guebuza,de chissano e de samora podera ser o mesmo mas o grau de seriedade de cada um deles e extremamente divrergente. enquanto samora era mais serio e pragmatico e pratico , os ultimos foram mais utopicos