Em meio ao debate moçambicano, vítima da nudez intelectual e preconceito político-ideológico, posso parecer herético e reaccionário-oposicionista, ao afirmar que, no nosso país, superabundam habitantes que cidadãos. Meu argumento básico surge da supernotável diferença comportamental entre habitantes e cidadãos. Moçambique tem um pouco mais de 20 milhões de habitantes. Isso não pressupõe que tenha, em essência, igual número de cidadãos, porém. Este texto tenta falar dos comportamentos vegetacionais dos habitantes moçambicanos, descaminhados do agir ético de cidadãos.strong>
I
Desçamos, com calma! Até hoje, ainda que não recorra à frescura dos mantos da divinizada academia secular, nada torna proibitivo afirmar que habitante tem, em princípio, ligação intrínseca com um dado biológico: nasce, cresce, alimenta-se, reproduz e morre. E, não fica por aí. Acumula, igualmente, comportamentos vegetacionais: vegeta, maquina pensamentos depravados e, por consequência, executa-os, inescrupulosamente.
Contudo, cidadão, para além dos atributos biológicos de habitante (menos, regra geral, o de vegetar e o de maquinar pensamentos depravados e, por consequência, executá-los inescrupulosamente), tem consciência de seus direitos e deveres, participando racionalmente, numa base ética, das decisões e do desenvolvimento de seu meio familiar, interpessoal, comunitário, nacional e internacional.
Embora perceba e reconheça a existência de “classes cívico-biológicas”, que intermediam habitantes e cidadãos, não farei o tratamento devido, nestes parágrafos. Fica, possivelmente, a minha dívida, para liquidá-la em próximas maquinações intelecto-cidadãs. Apenas, quero, aqui e agora, tratar dos dois extremos: habitantes e cidadãos.
Posto isto e a título exemplificativo-indagatório, um deputado toscanejador e bocejador, em plena sessão parlamentar, que até chega a esquecer o seu círculo eleitoral, é deputado-habitante ou deputado-cidadão? Tripulantes que, propositadamente, deixam a música ao som alto, causando problemas ao sistema nervoso dos passageiros, são tripulantes-habitantes ou tripulantes-cidadãos? As atitudes de dilapidação do Estado, praticadas pela maioria dos governantes de Moçambique, desde o ano da Independência Nacional, até aos dias que correm, mostram que eram ou são governantes-habitantes ou governantes-cidadãos? Justiça e Juizes que, em plena sessão de julgamentos, julgam os réus, numa base preconceituosa e injustiçam os pobres e fracos, são juizes-habitantes ou juizes-cidadãos? Presidente da República que, para deslocar-se, em missão de trabalho, até 75 quilómetros de sua residência oficial, aluga helicópteros (já é conhecido o défice orçamental de Moçambique), é presidente-habitante ou presidente-cidadão? Um casal de namorados que, sempre e sempre, em fins-de-semana ou tempo de passeio, encontra-se para estar em um restaurante ou lanchonete para comer, alcoolizar-se ou tomar bebidas suculentas, e nunca vai, em nome da cidadania intelectual e cultural, a uma exposição artística, museu, publicação de um livro ou nunca lê é casal de namorados-habitantes ou namorados-cidadãos? Continuo a apelar à calma!
II
Há, no parágrafo supramencionado, seis perguntas, inevitavelmente. A cada pergunta aplica-se a mesma resposta: não são cidadãos. O deputado, os tripulantes, os governantes, os juizes, o presidente da República e os namorados são habitantes, certamente, por não reunirem os requisitos atitudinais e comportamentais de um cidadão (para se ser cidadão não basta ter nascido e ter uma casa de alvenaria, viaturas, perfumes, gravatas, nível superior, escritório, cadeira giratória e mais; é preciso, no mínimo, ter valores espirituais e éticos, respeitar o semelhante na mesma proporção que desejamos ser respeitados; respeitar os bens colectivos e as leis republicanas, defendendo sempre o bem-estar de todos e tudo que pauta pela ética; investir no conhecimento e na leitura de fenómenos, visitar as casas artísticas, musaicas, livreiras e espirituais). Abaixo, estende-se alguma fala sobre comportamentos vegetacionais de habitantes.
Detenha-se nas definições “habitante” e “cidadão” e compare seus comportamentos, no dia-a-dia. Ao fazer isso, é muito fácil concluir que aquelas seis categorias exemplificativas são encostáveis à figura de habitantes e não de cidadãos (regra geral, países que congregam mais habitantes que cidadãos são mais pobres ou empobrecidos do que os que congregam cidadãos. Os habitantes, sempre que ensaiam pensar, pensam curto. Coloco abaixo cinco exemplos:
Exemplo 1: Vejam os Planos de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta, em Moçambique, que são desenhados para um quinquénio, apenas. O que mudam, realisticamente?
Exemplo 2: Vejam a miserabilidade e nudez cívica, patriótica e intelectual da maioria deputados “eleitos” pelos seus partidos – no parlamento moçambicano só vegetam, bocejando e toscanejando.
Exemplo 3: Vejam a arrogância do Partido no Poder, que nega a inclusão de outros partidos ou outros segmentos sociais no estrutura de poder governativo e esfera do Estado - a não ser quando a lei assim o obriga: Conselho Constitucional, Conselho de Estado, Assembleia da República...
Exemplo 4: Vejam os professores que fazem reprovar alunos brilhantes só porque leram ou lêem mais que eles ou professores que fazem reprovar alunas que negam oferecer-lhes os seus corpos para prazeres turístico-sexuais, em meio à depravação moral.
Exemplo 5: Um órgão de comunicação social, furtando-se de contratar jornalistas, de facto, para melhor desempenharem a profissão, recruta cantoras play back e outros pré-intelectuais e inconvenientes profissionais, só vem qualificar a minha tese: esse é um órgão de comunicação social-habitante, porque contrata pessoas intelectualmente inexistentes. Jornalismo é conhecimento racional e filosófico, que se aprende e se apreende por longos anos de infância, adolescência, juventude e vida adulta. Ninguém é jornalista só porque anda com microfone, gravador e bloco ou porque nas referências nacionais e internacionais é belo/a. Jornalista é um ser pensante - ofereço minha cabeça para ser degolado, em Natal próximo, caso seja errante, neste começo de século. Os cinco exemplos mostram o quão habitante é o nosso poder político, classe alta e média. Podem não aparentar isso, por causa das gravatas, viaturas, casas de alvenaria, perfumes e tantas coisas perecíveis de que a sua arrogância brada aos céus. Sublinho a minha tese: esses são, efectivamente, habitantes.
III
Continuemos pelo deputado. Se o deputado toscaneja e boceja, bastas vezes, em plena sessão parlamentar, significa que não está a responder às exigências de um parlamentar: debater ideias sobre a vida nacional, regional e internacional, confrontar colegas sobre os destinos de Moçambique, numa base argumentativa e ética, propor e produzir leis, fiscalizar a acção governamental e mais.
O bocejar e o toscanejar são um escândalo no poder legislativo e denunciam o estágio habitante do deputado, que se ocupa desse comportamento vegetacional - em suma, o deputado-habitante não pode tomar decisões racionais, com vistas ao desenvolvimento do país, porque está preso a uma condição vegetacional: a de habitante. Pode-se estar próximo de resposta realística, se se disser que o deputado assenta no Parlamento, para justificar a sua desempregabilidade, salário e regalias e não com a agenda de Moçambique actual. Esse deputado está, de facto, a cingir-se com comportamentos vegetacionais de um habitante. É perigoso, para a sanidade política, legislativa e social moçambicana, que tenhamos deputados-habitantes. Moçambique, para que se chame liberdade, tal como o hino nacional deixa propagar, precisa de se libertar desse tipo de deputados. Moçambique necessita de deputados-cidadãos, para caminhar à liberdade.
IV
Os nossos tripulantes, esses que gerem os famosos chapa 100 (autocarro ou micro-autocarro privado para transporte de passageiros), são dos exemplos do que este texto já retratou de comportamentos vegetacionais. Sempre que lhes convir, emitem som alto nos autocarros ou micro-autocarros, provocando problemas ao sistema nervoso - há quem sempre reclama pela saúde que vai sofrendo, porque à medida que os aparelhos emitem o som, através de suas grandes colunas, montadas depois da compra daqueles transportes de passageiros. Mais: Um outro comportamento que torna os nossos tripulantes de habitantes é o de ingerir bebidas alcoólicas, em plena viagem. Este comportamento denuncia a irresponsabilidade humana e profissional dos nossos tripulantes, ao não respeitar a actividade pública que exercem: fazer transportar passageiros, mais do que um emprego, é um acto de civismo e responsabilidade cidadã e social. Em nosso Moçambique é extremamente difícil deparar-se com motoqueiros e ciclistas que andem com capacetes: ao não ser portador de capacete mostram simplesmente que são motoqueiros-habitantes e ciclistas-habitantes.
O comportamento dos tripulantes, motoqueiros e ciclistas indica, sem reservas, que ainda se encontram num estágio habitante, faltando-lhes séculos para catapultar a situação de cidadãos. Ser cidadão não é um dado, como um habitante (bastou nascer para ser contado pelas estatísticas); ser cidadão é um construído ético e racional, que leva seu tempo e investimento. Quantos anos levaremos, no nosso anónimo Moçambique, para termos tripulantes-cidadãos, motoqueiros-cidadãos e ciclistas-cidadãos?
Penso que já disse o básico. Pouparei palavras, então. Não estenderei alguma fala sobre os governantes, os juizes, o presidente da República, os namorados e tripulantes.
V
O que torna as seis categorias em habitantes é a forma como gerem o seu dado biológico – nascem, crescem... Uma das características de um habitante, em nosso meio, é a sua vida em simulacro: tem valores éticos degradados e é bastante subdesenvolvimentista, na forma como encara as coisas e o mundo que o rodeia. O habitante não fica indignado com a sua indignidade ética, porque encontra-se assombrado pelo prazer do imediatismo e do consumo degradante. O habitante sempre está a comprar mais aparelhos de som de alta qualidade, carros e roupas igualmente ostensivas para a família, mas em momento algum lembra-se de comprar materiais espirituais, como uma gramática e demais livros para ele e os seus filhos, acompanhando o conhecimento e fazendo planos dignificantes e não cosméticos e de pouca duração. Nestas condições, é muito difícil que ele e suas crianças se tornem cidadãos. Aparentemente o são, porque tem carros, aparelhos, tem bom salário e as crianças estudam em colégios caros; mas, em essência, ele e as crianças são vegetadores, porque lhes falta a componente de sanidade ética, espiritual e cultura do intelecto. Regra geral, num dia de chuva, um habitante, à semelhança dos já caracterizados, conduz seu carro a uma (alta) velocidade; e vai, propositadamente, aspergindo água em transeuntes. Desrespeito e provocação são uma das características dos habitantes.
VI
Depois de ter argumentado e demonstrando que em Moçambique superabundam habitantes que cidadãos, não sei se posso continuar a parecer herético ou reaccionário-oposicionista.
Assim, em face ao descrito, deixo uma proposta: comecemos, hoje, a industrializar bugalhos-habitantes; amanhã, longínquo, transformar-se-ão em alhos cidadânicos, certamente. Deste modo, Moçambique vai tornar-se liberdade. Hoje, Moçambique é antónimo de liberdade. O que é indesejável. O desejo é que Moçambique seja liberdade. Liberdade significa aceitarmos ser dominados pela ética e respeitarmos o nosso próximo na mesma proporção que desejamos ser respeitados e cumprir as leis republicanas, construindo e solidificando aquilo que o filósofo Emmanuel Kant apelidara de “República Moral”.
Penso que onde há liberdade, há cidadãos. Onde há liberdade e cidadãos, os habitantes estão em extinção.
Neste começo de século, o maior desafio de Moçambique actual é montar uma indústria de transformação de um pouco mais de 20 milhões de habitantes em igual número de cidadãos. Quem fará isso, se dos órgãos de soberania até ao simples sapateiro de rua, passando pela academia, partidos políticos, comunicação social e desembocando à eclesia, andam, de um modo geral, vegetando em seus “currais”, como se de suínos se tratasse?
Sim, os mocambicanos sao, de um modo geral, habitantes. E nao cidadaos.
Por Josué Bila
2 comentários:
Este texto me chegou via email. Não pude deixar de lê-lo. Ao discutir a dicotomia cidadão/habitante avanças em campos pelos quais tenho receio em entrar.
Não por covardia.
Para entrar neles preciso ser como um sapador que só coloca o pé onde tem certeza de que não há mina. Neste caso ser sapador implica estudar, conhecer para poder formular ideias concretas sobre certos assuntos.
Agora numa coisa parece que coincidimos. O Meu/Nosso Moçambique tem muitos habitantes e poucos cidadãos.
Porque é que é assim?
Tenho para comigo, e já o disse citando alguém num post com o título "Cidadania - Um debate que se requer" que a "cidadania expressa um conjunto de direitos que dão à pessoa a possibilidade de participar activamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social."
Continuei nesse post dizendo que no contexto moçambicano, e não só, parece me que reduzimos a cidadania à votação e ao pagamento de impostos. E depois disso? Não haverá mais nada que o CIDADÃO deva fazer? Serão a votação e o pagamento de impostos as únicas formas que nós, cidadãos moçambicanos, temos de participar activamente da vida e do governo do nosso povo?
Me parece que a herança colonial e a visão revolucionária dos primeiros anos de independência constituem barreiras culturais e históricas para o sentido de cidadania que devemos ter no contexto de uma democracia como a que pretendemos construir.
Um dos reflexos dessa barreira é o nosso distanciamento em relação a coisa pública ou o alheamento quase completo em relação às políticas que, em nosso nome, os sucessivos governos da República de Moçambique tem adoptado.
A cidadania é, portanto, o conjunto dos direitos políticos de que goza um indivíduo e que lhe permitem intervir na direcção dos negócios públicos do Estado.
Que cidadania podemos construir num país com um índice de analfabetismo tão elevado? Que cidadania podemos construir num país com muitos alfabetizados, Drs., eng. Etc incultos?
É que para mim não haverá cidadania sem o conhecimento dos nossos direitos. Não haverá cidadania, pelo menos consciente, sem educação. Continuaremos habitantes se não tivermos acesso à escola e enquanto tudo o que nos resta no dia a dia é correr atrás do dólar para podermos fazer a refeição de um dia. Nessas condições não restará tempo para pensar nas soluções dos problemas do país que requerem a minha intervenção enquanto cidadão, pois este escasseia para resolver os meus próprios problemas.
Ser cidadão é respeitar e participar das decisões da sociedade para melhorar suas vidas e a de outras pessoas.
A educação é fundamental para a construção do ideal de cidadania e para o despertar de consciências sobre a coisa pública.
É imperioso despertar a cidadania divulgando-a através de instituições de ensino e meios de comunicação para o bem-estar e desenvolvimento da nação. Temos que ensinar estes conceitos aos meninos desde a mais tenra idade para formarmos gerações de patriotas cidadãos e não habitantes.
A cidadania não surge do nada. A cidadania não nos é dada, ela é construída e conquistada a partir da nossa capacidade de organização, participação e intervenção social.
Amigo Bila,
Não sei como cheguei a vc ou como vc chegou a mim.
Há meses recebo seus emails. Agora conheci seu blog e me encantei.
Sou pernambucano apaixonado por Moçambique, onde vivi por um ano em 2002/2003.
Amanhã vou indicar essa Bantulândia na minha Bodega (www.bodega.blog.br). Querendo, faça-me uma visita.
Estamos juntos,
Ivan
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