“No fim do dia, a
Justiça e o Jornalismo estão ao serviço do cidadão”, Ericino de Salema,
Jornalista e Jurista
ARMANDO NENANE*
Legenda: Jornalista Armando Nenane em discurso sobre jornalismo judiciário. Foto: www.irex.co.mz
No momento em que escrevo o presente
artigo, recebo notificações sucessivas no facebook, através da internet
instalada no meu computador via modem. Essas notificações são da conta do
facebook do Conselho Nacional da Justiça do Brasil, dando-me notícias sobre
aquilo que está a acontecer no mundo da justiça naquele país latino-americano.
“Conselheiro cassa promoção de juiza ao cargo de desembargadora do TJAP”.
“Cinco magistrados foram afastados e três punidos em sessão do CNJ”.
“Inscrição
para Mostra do Judiciário termina segunda-feira, dia 30”. “Empresa contribui
para reinserção social de mais de cem detentos”. “Justiça no bairro chega à
nova aldeia indígena em Nova Laranjeiras”. “Tribunal paranaense leva cidadania
a comunidades ribeirinhas”. “Magistrados concluem segundo módulo do curso de
Aperfeiçoamento em Prática Jurídica”. “Prorrogado prazo de envio das sugestões
para 1º grau da justiça”. Tendo avistado as notificações, clico na notícia
relativa à cassação da promoção de juíza ao cargo de desembargadora do TJAP e
entro em contacto com o website do CNJ, uma instituição pública que visa
aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, a fim de saber mais
sobre o assunto. É assim que todos os dias tomo conhecimento de tudo aquilo que
acontece na justiça brasileira. A Constituição da República Federal do Brasil
estabelece que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral (inciso XXXIII do
art. 5º da Constituição da República). Para tornar essa premissa
realidade, foi criada a Lei de Acesso à Informação (Lei
n. 12.527 de 2011). Com a lei, a publicidade tornou-se a regra e o
sigilo, a excepção. No Poder Judiciário, além de proporcinar mais transparência
sobre o funcionamento dos tribunais, a norma torna mais rápido e fácil o acesso
de qualquer pessoa a dados, como remuneração de servidores e magistrados,
movimentação financeira, despesas e processos.
Antes mesmo de terminar de ler as
notícias da página do CNJ, outras notificações sucessivas no facebook chamam-me
atenção. Estas notificações, agora, são da conta do facebook da revista
brasileira Consultor Jurídico, também a me darem notícias sobre aquilo que
acontece na justiça brasileira. “Tribunais suspendem causas por causa de greve
de bancários”. “Norma de banco não pode se sobrepor a princípio de protecção da
família”. “Mesmo sendo polo em Acção Penal, pessoa jurídica não tem direito a
Habeas Corpus”. “Consumidor que migra de plano de previdência não tem parcelas
restituidas”. “Punição às empresas é diferencial da Lei Anti-Corrupção”.
Se as primeiras notícias actuais sobre
o mundo da justiça no Brasil tive o privilégio de as ter imediatamente através
do website de uma instituição pública, estas últimas vem de um órgão de
informação privado, especializado na cobertura de assuntos de justiça de forma
independente e que tem uma rede de correspondentes em vários Estados
brasileiros, assim como em várias partes do mundo. Trata-se de uma publicação
que tem como público juizes, procuradores, advogados, especialistas
de várias áreas do direito, estudantes e público em geral. Sente-se
nela o pulsar da justiça brasileira.
Informadíssimo sobre tudo aquilo que se
passa no Brasil em matéria de justiça, logo a seguir sinto-me frustrado, ao
constatar que tanto o Conselho Nacional da Justiça brasileiro, quanto a revista
brasileira Consultor Jurídico, fazem o jornalismo judiciário, aquele que
corresponde à cobertura das actividades desenvolvidas pelos órgãos de administração
da justiça, designadamente tribunais, procuradorias, estabelecimentos
prisionais, advogados, escolas de formação de magistrados, não propriamente em
benefício de um leitor como eu, do além mar, mas sim em benefício do cidadão
brasileiro, a fim de que através da informação ele possa aceder ao direito e à
justiça naquele país, assim como tornar a justiça mais transparente na sua
acção.
Frustra-me saber que enquanto os
brasileiros fazem da informação um instrumento fundamental na promoção do
acesso ao direito e à justiça assim como de vigilância da actuação dos órgãos
da administração da justiça, ao nível doméstico ainda custa muito falar de
jornalismo especializado na cobertura de assuntos de justiça, tanto nos
meandros do jornalismo em geral quanto nos corredores do próprio sistema de
justiça, tornando ainda mais difícil de posicionar o lugar da informação na
promoção de uma justiça verdadeiramente ao serviço do cidadão, assim como
instrumento que possa permitir promover a sua transparência. Tenho trabalhado
como um activista do acesso à informação na justiça há sensivelmente dois anos,
tempo mais que suficiente para ter passado por experiências que me permitem
assegurar que depois do legislativo e do executivo, o judiciário é o mais
intransparente de todos os poderes, não se compreendendo muito bem quem lhe
guarda, perdendo a oportunidade de através do jornalismo poder promover as suas
acções bem como se resguardar. É preciso começarmos desintupir os canais de
acesso jornalístico ao mundo da justiça.
A Iª Conferência de Jornalismo
Judiciário, realizada a 31 de Maio de 2013 pela Associação Moçambicana de
Jornalismo Judiciário, por ocasião das celebrações do Dia Mundial da Liberdade
de Imprensa, subordinada ao tema “Os Desafios da Imprensa na Cobertura de Assuntos
de Justiça”, permitiu levantar algumas provocações relativas ao relacionamento
entre a justiça e a imprensa em Moçambique, assim como lançar algumas bases
para um debate aberto e franco sobre a problemática do acesso à informação na
justiça e o lugar do jornalismo na justiça. Se, por um lado, alguns painelistas
encaram com optimismo o despertar de uma consciência da classe jornalística
sobre a necessidade de assumir um papel relevante na promoção do acesso ao
direito e à justiça, por outro lado, questiona-se o tempo que os jornalistas,
ainda que com particular interesse pela cobertura de assuntos de justiça,
poderão perder se especializando na cobertura da actividade jurisdicional numa
realidade em que os órgãos de informação não dispõem de recursos humanos
suficientes para o efeito, uma vez que estes órgãos acabam por funcionar com
equipas reduzidas, o que faz com que sejam os mesmos jornalistas a exercerem
jornalismo em várias áreas, política, economia, sociedade, desporto, cultura,
não havendo cultura de especialidade. Ora, há aqui que se ressalvar que existem
dois níveis de jornalismo de especialidade, sendo o primeiro aquele que é
realizado pelos órgão de informação generalistas, através das suas secções de
política, economia, cultura, desporto, sociedade, achando-se, numa outra
dimensão, aquele que é realizado por organizações que só e só se dedicam a uma
área em particular, como seja o caso do Conselho Nacional da Justiça do Brasil
assim como da revista brasileira Consultor Jurídico, dois veículos que servem
de alicerce para grande causa da AMJJ. A AMJJ tem estado a desenvolver a sua
acção nas duas dimensões, tanto com a pretensão de se especializar a si própria
e aos seus coloboradores tendo em vista as suas publicações de especialidade em
matérias de justiça, assim como àqueles que, sendo jornalistas de diferentes
órgãos de informação e interessados em se especializar na cobertura de assuntos
de justiça possam, querendo, juntar-se à nossa navegação, a qual se aventura
tanto à montante, quanto à jusante, com vista a encontrar um melhor porto.
Há, ainda, quem entenda que Moçambique
devia dar mais primazia ao jornalismo jurídico no lugar do jornalismo
judiciário (SALEMA, Ericino; “A Imprensa e a Justiça: Para um jornalismo de
especialidade”, Mesa Redonda promovida pela Associação Moçambicana de
Jornalismo Judiciário, 23 de Setembro de 2013), por entender que este é mais
micro-especializado que o primeiro, enquanto o primeiro abarca, para além das
questões do judiciário as relativas ao processo legislativo, de reformas
ao nível de políticas públicas, da prática da advocacia, da protecção e defesa
dos direitos fundamentais, para além de que os órgãos de informação não dispõem
de recursos humanos suficientes para espalhá-los em várias áreas de especialidade.
No nosso entender, ainda que o jornalismo judiciário se interesse pela
cobertura das actividades realizadas pelos órgãos de administração da justiça,
designadamente polícia, procuradorias, tribunais, comissões de direitos
humanos, estabelecimentos prisionais, entre outros, este mesmo jornalismo não
pode pretender funcionar como uma ilha isolada de outras áreas jornalísticas,
como sejam o jornalismo parlamentar, mais vocacionado no acompanhamento do
processo legislativo. O jornalismo judiciário não poderá perder de vista, por
exemplo, o processo de revisão do Código Penal, sendo esta a principal lei
criminal do país e, porque não, o principal instrumento de trabalho do
judiciário. Não pode, de forma alguma, o jornalismo judiciário estar alheio,
por exemplo, ao processo de revisão da Constituição da República, sobre o qual
se enforma a estrutura político-constitucional do sistema de justiça em
Moçambique. O que se pretende com a especialização é que o jornalista da área
da justiça possa se ater à árvore, que é, por assim dizer, a justiça, sem,
entretanto, ignorar a floresta, que é, por assim dizer, a República de
Moçambique. Basta lembrar dos questionamentos que se fazem sobre como a revisão
da Constituição da República pode contribuir para a independência efectiva do
poder judicial (CISTAC, Gilles; A Revisão Constitucional para a Boa Governação,
GDI), para nos darmos conta que um judiciário menos independente do poder
político poderá ser, simultaneamente, um judiciário menos aberto ao jornalismo,
um judiciário menos aberto ao escrutínio público.
Embora a Constituição da República de
Moçambique assegure que todo o cidadão tem o direito à informação, assim como a
liberdade de imprensa, o acesso à informação na justiça em particular ainda
está à quem do desejável, havendo casos até em que os jornalistas se vêem
impedidos de proceder à cobertura da actividade jurisdicional mesmo quando não
se trate de momentos em que os processos estejam em segredo de justiça. Há
casos em que vemos jornalistas serem impedidos de efectuar a cobertura de
julgamentos, apesar de a lei estabelecer que todo o julgamento é público, salvo
algumas excepções. O acesso à informação deve ser a regra e o sigilo a
excepção, a fim de que se possa materializar o principio segundo o qual só provido
de informação é que o cidadão poderá exercer na plenitude os seus direitos e
liberdades fundamentais assim como uma cidadania activa, responsável e
consciente.
Num mundo global, não viveremos como se
estivéssemos numa ilha isolada, alheia à tudo aquilo que se passa à volta.
Continuaremos a buscar experiências de outras partes do mundo, procuraremos
estudar mais, a fim de que possamos alimentar a alma e o espírito que assumirão
esta causa, cientes de que só com um pleno exercício da liberdade de pensamento
e do direito de pensar e agir diferente é que poderemos levar a cabo a nossa
missão de instituir um jornalismo especializado em matérias de justiça livre e
independente, mas embuído de conhecimento e perspicácia.
Outrossim, não descurámos o facto de as
novas tecnologias de informação e comunicação virem trazer novos modelos de
jornalismo especializado que antes não podiam ser equacionados. O jornalismo
online especializado permite estar presente na cobertura de assuntos de justiça
24 sobre 24, o que com a chamada imprensa tradicional não era possível. Ora, a
cobertura plena da actividade judiciária faz-se com uma vontade de estar
presente em todos pontos do país, contrariamente à cobertura da actividade
parlamentar, que se resume a um só jornalista que se faz presente às sessões do
parlamento. Também trabalharemos lado a lado com as instituições da justiça, a
fim de que as mesmas possam aperfeiçoar ainda mais os seus serviços de
assessoria de imprensa. Um sinal nítido de que a justiça ainda não privilegia o
papel da informação em Moçambique é o facto de a Procuradoria Geral da
República, por exemplo, ter apenas dois assessores de imprensa, um na
procuradoria-geral e outro no Gabinete Central de Combate à Corrupção, assim
como o facto dos Tribunais Judiciais não terem nenhum assessor de imprensa, nem
no Tribunal Supremo nem nos tribunais provinciais. Só nas procuradorias e
tribunais provinciais a justiça ressente-se, teoricamente, da falta de 22
assessores de imprensa. Ora, embora tenhamos bons exemplos do jornalismo
judiciário realizado em outras partes do mundo como no Brasil, a especialização
de jornalistas moçambicanos na área não se fará a custa de um simples copy and
past dos modelos dos outros sem compreender a realidade interna, pelo que se
deve privilegiar a realização de uma pesquisa ou estudo de base sobre a
problemática do acesso à informação na justiça.
Os desafios são enormes. Do estudo de
base sobre a problemática do acesso à informação na justiça, seguiremos para a
concepção de um manual prático de jornalismo judiciário, cientes de que não
existem modelos prontos a copiar, dado que a formação em jornalismo judiciário
só será possível se a mesma estiver em consonância com as linhas com que se
cose o ordenamento jurídico moçambicano.
Em qualquer parte do mundo onde existe
liberdade de imprensa, as relações entre a justiça e a imprensa são sempre
marcadas por conflitos que nem sempre servem para os desígnios de uma sociedade
mais justa, plural e verdadeira. Se, por um lado, a imprensa opera em ciclos temporais
mais imediatos, curtos e voláteis, acabando, os jornalistas, por serem vistos
como aqueles profissionais que a todo o custo buscam informação, chegando mesmo
a extravasar os limites do acesso à informação na justiça, por outro lado, a
justiça, que precisa de tempo para desenvolver e amadurecer a sua acção, acaba
por ser vista como aquela que pracica o secretismo exacerbando, fechando-se em
copas, o que não contribui nem para a justiça nem para o jornalismo. Por estas
e outras razões, acreditámos que o conhecimento mútuo será o ponto de para se
colmatar as lacunas, reduzir as fronteiras e diminuir o preconceito recíproco.
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*Jornalista/Director Executivo da AMJJ
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