quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Nbanze, Castel-Branco e o estômago das emergências diárias

O processo contra Fernando NBanze e Castel-Branco e a sua absolvição revelou mais uma vez como a nossa sociedade – particularmente aquela dos urbanos e assimilados de hoje – cria e amplia a fama de pessoas não por suas melhores produções técnicas e académico-intelectuais para Moçambique, mas na invenção de uma tal excessiva (ou fraca) presença de direitos civis e políticos – e seus derivados, dos quais foram julgados.

Aquele texto de Castel-Branco, reverberado no sensato facebook, e ampliado pelo colega Nbanze  não representa, certamente, a produção intelectual de Castel-Branco – uma lupa responsável parece não enxergar algo brilhante e usável para um Moçambique carente de racionalidade cidadã naquele escrito, embora em nome de democracia de opinião eu respeite o mesmo. Digo isso porque o professor Castel-Branco tem uma produção académica e técnica robusta e, infeliz e simultaneamente, em virtude de um Estado com quase-não-noção de sê-lo (um Estado em construção processual) e de uma cidadania rancorosa (esta nunca quer estudar a História dos problemas politicos e sociais de Mocambique, porque o culpado já está identificado de antemão), não são os seus textos carregadas de reflexões e propostas para um Estado e sociedade mais justas que ampliaram a sua fama, mas a truculência técnica de uma parte da Justiça moçambicana, incapaz de se rever no espelho da sanidade de um Estado em construção processual - este que não se coaduna com a portugalidade sotacal, nem com as togas e nem tão pouco com as repetições às obras portuguesas, que pouco ou nada têm a ver com a sociedade moçambicana real, a não ser para lembrarmos da reprodução simbólica da portugalidade assimilacionista.

O mesmo devo dizer do meu amigo e colega Nbanze. Desde que está no jornalismo – creio tê-lo conhecido em 2001 - contribui com a sua cara inteligência e o seu jeito paciente e tranquilo, de fazer o jornalismo, profissão esta que pela sua natureza acaba criando um tipo de arrogância em nós.


O que deveria ter ampliado a fama tanto de Nbanze quanto de Castelo-Branco não deveria ter sido o processo, julgamento e absolvição (e, agora, fala-se do recurso), mas as suas  brilhantes ideias para Moçambique. Duvido que os actores do Estado e da dita e profética sociedade civil - e muito menos os que estavam de fora do tribunal  - procuram ideias brilhantes e prioridades para Moçambique. Uma coisa é o que a dita e profética sociedade civil “diz sonhar” para Moçambique e outra são os seus “procedimentos institucionais” que em nada cooperam para a sanidade democrática e impessoalidade das relações políticas no Estado. Uma sociedade como a nossa, há muito recheada de relações sociais e políticas institucionalizadas parentais, à procura de satisfazer o estômago das emergências diárias,  preocupada, prioritariamente, em juntar dinheiro para o lobolo, xitike, padrinhos e fatinhos para festas, em cujos empregos são concedidas à moda nepotista, na dita sociedade civil, cheia de santidade e que quer ver essa santidade nos governantes, pode não ser digna de ideias brilhantes. A preocupação com o estômago emergencial é das coisas mais básicas e corretas para a nossa sobrevivência. O que não é correcto é o fingimento estrutural de que o estômago emergencial não faz, primeiro, parte das nossas relações políticas e sociais institucionalizadas. Não é casual que os defensores mais famosos da democracia e seus derivados – ou de onde a democracia é derivada – não sejam capazes de escrever um documento-mãe  para a reflexão democrática em Moçambique, mas sejam especialistas em escrever projetos em nome de democracia para doadores. O que quer o doador? Relações de Poder? Qual é a relação doador-donatário? Qual é a relação entre o estômago emergencial e a situação política e jurídico-constitucional do nosso Estado? Que Estado somos? Que sociedade somos? A minha pista é: Estado e sociedade civil cujas relações sociais e políticas cooperam no multiforme estômago das emergências diárias. Talvez, por isso, posso dizer por último que Nbanze e Castel-Branco tenham sorte por as suas melhores produções técnicas e  académico-intelectuais não terem sido usadas publicamente para e em Moçambique. O uso das melhores produções técnicas e  académico-intelectuais é muito mais caro que um fatinho para lobolo e bengala para os sogros ou aqueles bens para xigiyana (espécie de dote oferecida à noiva pela sua família)ou, ainda, como queiram, casas reis-do-chão e primeiro andar. Parece que não temos instituições - “dinheiro social” e “tempo ético” - para uso das melhores produções técnicas e  académico-intelectuais. Talvez o recurso do Ministério Público àquele caso esteja a cooperar com o que disse. Não insistimos que sejam ideias brilhantes e produções técnicas e académicas que afamem as pessoas, mas no conjunto de intrigas sociais e políticas, vestidas de uma boa gravata vermelha – pensem também nos seus derivados comportamentais - e tudo que ela representa, na sociedade das boladas e dos styles. Enquanto essas mazelas atravessam a nossa sociedade, a cidadania rancorosa está a robustecer-se, em nome da defesa dos direitos humanos. 

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