domingo, 18 de maio de 2014

Jornalismo Judiciário: Em busca de um novo paradigma




“No fim do dia, a Justiça e o Jornalismo estão ao serviço do cidadão”, Ericino de Salema, Jornalista e Jurista

ARMANDO NENANE*
Legenda: Jornalista Armando Nenane em discurso sobre jornalismo judiciário. Foto: www.irex.co.mz

No momento em que escrevo o presente artigo, recebo notificações sucessivas no facebook, através da internet instalada no meu computador via modem. Essas notificações são da conta do facebook do Conselho Nacional da Justiça do Brasil, dando-me notícias sobre aquilo que está a acontecer no mundo da justiça naquele país latino-americano. “Conselheiro cassa promoção de juiza ao cargo de desembargadora do TJAP”. “Cinco magistrados foram afastados e três punidos em sessão do CNJ”.
“Inscrição para Mostra do Judiciário termina segunda-feira, dia 30”. “Empresa contribui para reinserção social de mais de cem detentos”. “Justiça no bairro chega à nova aldeia indígena em Nova Laranjeiras”. “Tribunal paranaense leva cidadania a comunidades ribeirinhas”. “Magistrados concluem segundo módulo do curso de Aperfeiçoamento em Prática Jurídica”. “Prorrogado prazo de envio das sugestões para 1º grau da justiça”. Tendo avistado as notificações, clico na notícia relativa à cassação da promoção de juíza ao cargo de desembargadora do TJAP e entro em contacto com o website do CNJ, uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, a fim de saber mais sobre o assunto. É assim que todos os dias tomo conhecimento de tudo aquilo que acontece na justiça brasileira. A Constituição da República Federal do Brasil estabelece que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral (inciso XXXIII do art. 5º da Constituição da República). Para tornar essa premissa realidade, foi criada a Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527 de 2011). Com a lei, a publicidade tornou-se a regra e o sigilo, a excepção. No Poder Judiciário, além de proporcinar mais transparência sobre o funcionamento dos tribunais, a norma torna mais rápido e fácil o acesso de qualquer pessoa a dados, como remuneração de servidores e magistrados, movimentação financeira, despesas e processos.

Antes mesmo de terminar de ler as notícias da página do CNJ, outras notificações sucessivas no facebook chamam-me atenção. Estas notificações, agora, são da conta do facebook da revista brasileira Consultor Jurídico, também a me darem notícias sobre aquilo que acontece na justiça brasileira. “Tribunais suspendem causas por causa de greve de bancários”. “Norma de banco não pode se sobrepor a princípio de protecção da família”. “Mesmo sendo polo em Acção Penal, pessoa jurídica não tem direito a Habeas Corpus”. “Consumidor que migra de plano de previdência não tem parcelas restituidas”. “Punição às empresas é diferencial da Lei Anti-Corrupção”.
Se as primeiras notícias actuais sobre o mundo da justiça no Brasil tive o privilégio de as ter imediatamente através do website de uma instituição pública, estas últimas vem de um órgão de informação privado, especializado na cobertura de assuntos de justiça de forma independente e que tem uma rede de correspondentes em vários Estados brasileiros, assim como em várias partes do mundo. Trata-se de uma publicação que tem como público juizes, procuradores, advogados, especialistas de  várias áreas do direito, estudantes e público em geral. Sente-se nela o pulsar da justiça brasileira.

Informadíssimo sobre tudo aquilo que se passa no Brasil em matéria de justiça, logo a seguir sinto-me frustrado, ao constatar que tanto o Conselho Nacional da Justiça brasileiro, quanto a revista brasileira Consultor Jurídico, fazem o jornalismo judiciário, aquele que corresponde à cobertura das actividades desenvolvidas pelos órgãos de administração da justiça, designadamente tribunais, procuradorias, estabelecimentos prisionais, advogados, escolas de formação de magistrados, não propriamente em benefício de um leitor como eu, do além mar, mas sim em benefício do cidadão brasileiro, a fim de que através da informação ele possa aceder ao direito e à justiça naquele país, assim como tornar a justiça mais transparente na sua acção.

Frustra-me saber que enquanto os brasileiros fazem da informação um instrumento fundamental na promoção do acesso ao direito e à justiça assim como de vigilância da actuação dos órgãos da administração da justiça, ao nível doméstico ainda custa muito falar de jornalismo especializado na cobertura de assuntos de justiça, tanto nos meandros do jornalismo em geral quanto nos corredores do próprio sistema de justiça, tornando ainda mais difícil de posicionar o lugar da informação na promoção de uma justiça verdadeiramente ao serviço do cidadão, assim como instrumento que possa permitir promover a sua transparência. Tenho trabalhado como um activista do acesso à informação na justiça há sensivelmente dois anos, tempo mais que suficiente para ter passado por experiências que me permitem assegurar que depois do legislativo e do executivo, o judiciário é o mais intransparente de todos os poderes, não se compreendendo muito bem quem lhe guarda, perdendo a oportunidade de através do jornalismo poder promover as suas acções bem como se resguardar. É preciso começarmos desintupir os canais de acesso jornalístico ao mundo da justiça.

A Iª Conferência de Jornalismo Judiciário, realizada a 31 de Maio de 2013 pela Associação Moçambicana de Jornalismo Judiciário, por ocasião das celebrações do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, subordinada ao tema “Os Desafios da Imprensa na Cobertura de Assuntos de Justiça”, permitiu levantar algumas provocações relativas ao relacionamento entre a justiça e a imprensa em Moçambique, assim como lançar algumas bases para um debate aberto e franco sobre a problemática do acesso à informação na justiça e o lugar do jornalismo na justiça. Se, por um lado, alguns painelistas encaram com optimismo o despertar de uma consciência da classe jornalística sobre a necessidade de assumir um papel relevante na promoção do acesso ao direito e à justiça, por outro lado, questiona-se o tempo que os jornalistas, ainda que com particular interesse pela cobertura de assuntos de justiça, poderão perder se especializando na cobertura da actividade jurisdicional numa realidade em que os órgãos de informação não dispõem de recursos humanos suficientes para o efeito, uma vez que estes órgãos acabam por funcionar com equipas reduzidas, o que faz com que sejam os mesmos jornalistas a exercerem jornalismo em várias áreas, política, economia, sociedade, desporto, cultura, não havendo cultura de especialidade. Ora, há aqui que se ressalvar que existem dois níveis de jornalismo de especialidade, sendo o primeiro aquele que é realizado pelos órgão de informação generalistas, através das suas secções de política, economia, cultura, desporto, sociedade, achando-se, numa outra dimensão, aquele que é realizado por organizações que só e só se dedicam a uma área em particular, como seja o caso do Conselho Nacional da Justiça do Brasil assim como da revista brasileira Consultor Jurídico, dois veículos que servem de alicerce para grande causa da AMJJ. A AMJJ tem estado a desenvolver a sua acção nas duas dimensões, tanto com a pretensão de se especializar a si própria e aos seus coloboradores tendo em vista as suas publicações de especialidade em matérias de justiça, assim como àqueles que, sendo jornalistas de diferentes órgãos de informação e interessados em se especializar na cobertura de assuntos de justiça possam, querendo, juntar-se à nossa navegação, a qual se aventura tanto à montante, quanto à jusante, com vista a encontrar um melhor porto.

Há, ainda, quem entenda que Moçambique devia dar mais primazia ao jornalismo jurídico no lugar do jornalismo judiciário (SALEMA, Ericino; “A Imprensa e a Justiça: Para um jornalismo de especialidade”, Mesa Redonda promovida pela Associação Moçambicana de Jornalismo Judiciário, 23 de Setembro de 2013), por entender que este é mais micro-especializado que o primeiro, enquanto o primeiro abarca, para além das questões do judiciário as relativas ao processo legislativo, de reformas ao nível de políticas públicas, da prática da advocacia, da protecção e defesa dos direitos fundamentais, para além de que os órgãos de informação não dispõem de recursos humanos suficientes para espalhá-los em várias áreas de especialidade. No nosso entender, ainda que o jornalismo judiciário se interesse pela cobertura das actividades realizadas pelos órgãos de administração da justiça, designadamente polícia, procuradorias, tribunais, comissões de direitos humanos, estabelecimentos prisionais, entre outros, este mesmo jornalismo não pode pretender funcionar como uma ilha isolada de outras áreas jornalísticas, como sejam o jornalismo parlamentar, mais vocacionado no acompanhamento do processo legislativo. O jornalismo judiciário não poderá perder de vista, por exemplo, o processo de revisão do Código Penal, sendo esta a principal lei criminal do país e, porque não, o principal instrumento de trabalho do judiciário. Não pode, de forma alguma, o jornalismo judiciário estar alheio, por exemplo, ao processo de revisão da Constituição da República, sobre o qual se enforma a estrutura político-constitucional do sistema de justiça em Moçambique. O que se pretende com a especialização é que o jornalista da área da justiça possa se ater à árvore, que é, por assim dizer, a justiça, sem, entretanto, ignorar a floresta, que é, por assim dizer, a República de Moçambique. Basta lembrar dos questionamentos que se fazem sobre como a revisão da Constituição da República pode contribuir para a independência efectiva do poder judicial (CISTAC, Gilles; A Revisão Constitucional para a Boa Governação, GDI), para nos darmos conta que um judiciário menos independente do poder político poderá ser, simultaneamente, um judiciário menos aberto ao jornalismo, um judiciário menos aberto ao escrutínio público.

Embora a Constituição da República de Moçambique assegure que todo o cidadão tem o direito à informação, assim como a liberdade de imprensa, o acesso à informação na justiça em particular ainda está à quem do desejável, havendo casos até em que os jornalistas se vêem impedidos de proceder à cobertura da actividade jurisdicional mesmo quando não se trate de momentos em que os processos estejam em segredo de justiça. Há casos em que vemos jornalistas serem impedidos de efectuar a cobertura de julgamentos, apesar de a lei estabelecer que todo o julgamento é público, salvo algumas excepções. O acesso à informação deve ser a regra e o sigilo a excepção, a fim de que se possa materializar o principio segundo o qual só provido de informação é que o cidadão poderá exercer na plenitude os seus direitos e liberdades fundamentais assim como uma cidadania activa, responsável e consciente.

Num mundo global, não viveremos como se estivéssemos numa ilha isolada, alheia à tudo aquilo que se passa à volta. Continuaremos a buscar experiências de outras partes do mundo, procuraremos estudar mais, a fim de que possamos alimentar a alma e o espírito que assumirão esta causa, cientes de que só com um pleno exercício da liberdade de pensamento e do direito de pensar e agir diferente é que poderemos levar a cabo a nossa missão de instituir um jornalismo especializado em matérias de justiça livre e independente, mas embuído de conhecimento e perspicácia.

Outrossim, não descurámos o facto de as novas tecnologias de informação e comunicação virem trazer novos modelos de jornalismo especializado que antes não podiam ser equacionados. O jornalismo online especializado permite estar presente na cobertura de assuntos de justiça 24 sobre 24, o que com a chamada imprensa tradicional não era possível. Ora, a cobertura plena da actividade judiciária faz-se com uma vontade de estar presente em todos pontos do país, contrariamente à cobertura da actividade parlamentar, que se resume a um só jornalista que se faz presente às sessões do parlamento. Também trabalharemos lado a lado com as instituições da justiça, a fim de que as mesmas possam aperfeiçoar ainda mais os seus serviços de assessoria de imprensa. Um sinal nítido de que a justiça ainda não privilegia o papel da informação em Moçambique é o facto de a Procuradoria Geral da República, por exemplo, ter apenas dois assessores de imprensa, um na procuradoria-geral e outro no Gabinete Central de Combate à Corrupção, assim como o facto dos Tribunais Judiciais não terem nenhum assessor de imprensa, nem no Tribunal Supremo nem nos tribunais provinciais. Só nas procuradorias e tribunais provinciais a justiça ressente-se, teoricamente, da falta de 22 assessores de imprensa. Ora, embora tenhamos bons exemplos do jornalismo judiciário realizado em outras partes do mundo como no Brasil, a especialização de jornalistas moçambicanos na área não se fará a custa de um simples copy and past dos modelos dos outros sem compreender a realidade interna, pelo que se deve privilegiar a realização de uma pesquisa ou estudo de base sobre a problemática do acesso à informação na justiça.

Os desafios são enormes. Do estudo de base sobre a problemática do acesso à informação na justiça, seguiremos para a concepção de um manual prático de jornalismo judiciário, cientes de que não existem modelos prontos a copiar, dado que a formação em jornalismo judiciário só será possível se a mesma estiver em consonância com as linhas com que se cose o ordenamento jurídico moçambicano.

Em qualquer parte do mundo onde existe liberdade de imprensa, as relações entre a justiça e a imprensa são sempre marcadas por conflitos que nem sempre servem para os desígnios de uma sociedade mais justa, plural e verdadeira. Se, por um lado, a imprensa opera em ciclos temporais mais imediatos, curtos e voláteis, acabando, os jornalistas, por serem vistos como aqueles profissionais que a todo o custo buscam informação, chegando mesmo a extravasar os limites do acesso à informação na justiça, por outro lado, a justiça, que precisa de tempo para desenvolver e amadurecer a sua acção, acaba por ser vista como aquela que pracica o secretismo exacerbando, fechando-se em copas, o que não contribui nem para a justiça nem para o jornalismo. Por estas e outras razões, acreditámos que o conhecimento mútuo será o ponto de para se colmatar as lacunas, reduzir as fronteiras e diminuir o preconceito recíproco.
  
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*Jornalista/Director Executivo da AMJJ

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