segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Degradação ética

Josué Bila


A sociedade moçambicana sofre de entupimento ético, depois de ter gozado, nos primeiros anos da independência, de sanidade ética, ainda que de baixa intensidade. Meu pressuposto básico aponta que, em Moçambique actual, existe um terreno fértil, criador de paralisia sócio-moral, que desvia o um e o todo na construção de benfeitorias éticas nas esferas de vida – desde familiares, inter-individuais e sociais, administração pública, passando por público-privadas, desembocando nas cosmopolitas. Desta maneira, quando falo de entupimento ético, quero referir-me à incapacidade individual e social em drenar valores espirituais e éticos nas relações que se desenvolvem na estrutura social, cujos desdobramentos primários implicam na insanidade ética na estrutura da sociedade.

Mundo real do entupimento ético
Pelo menos, há um reconhecimento público que aponta que Moçambique experimenta dissabores provincianos de bizarrice ética em todas as suas esferas de vida. Basta passear ou estar na via pública, ler discursos de Samora Machel, relatórios da Ética Moçambique, Centro de Integridade Pública, Agenda 2025, Unidade Técnica de Reforma do Sector Público e demais documentos. Em plena via ou praça pública é comum ouvirmos insultos dirigidos a pessoas (des)conhecidas em nome de órgãos genitais da mãe do ofendido ou do ofensor. Por que ofendermo-nos uns aos outros em desonra às nossas mães e mulheres? Experimentamos uma época em que passear na via pública ou parar nas terminais dos nossos transportes públicos pode ser sinónimo de entregar o ouvido ou as nossas vidas às falas dos provincianos da bizarrice ética, que pululam ali e acolá.

A lista característica sobre o entupimento ético seria enorme se, de facto, quisesse expô-la, aqui. Mas não posso deixar de aproveitar estas linhas para lembrar-vos o comportamento agressivo do cobrador de transporte público semi-colectivo: anda sempre iracundo, sarrafaçal, agressor emocional e verbal dos passageiros, atendimento selvático, higiene baixa... Enfim, o nosso cobrador é um instituto de entupimento ético. Deixo o cobrador e vou noutros institutos de entupimento ético: o pedreiro, ao ser contratado para uma obra, a probabilidade de desviar parte do material de construção, que tanto custou para o contratante, é maior, para além de provavelmente não cumprir com as demais cláusulas do contrato. Ou é o próprio dono da obra que, na hora de pagamento, desaparece. Infelizmente, aqui, em Moçambique, todas as esferas padecem de doença comum: entupimento ético. Não sermos éticos nas nossas relações sociais passou a ser lugar-comum. Lugar-comum venerado. O entupimento ético é um deus adorado por todos. Todos fomos muito mais treinados a trazer diariamente oferendas ao deus do entupimento ético. Faço parte de uma geração que dificilmente alguém escapou (ou foi tentado) à compra de nota em uma disciplina escolar ou foi obrigado a diminuir a idade para poder freqüentar aqueles níveis escolares, cujos estabelecimentos de ensino são escassos. Qual família nunca comprou uma vaga ou nunca tenha falsificado a idade para ingresso escolar de um dos seus agregados? Quantos conseguiram as vagas por meios legais? A necessidade foi maior que a ética? Ou a ética é sempre menosprezada, quando a administração pública for incapaz de garantir os mais básicos serviços ou direitos humanos? De facto, o debate pode levar-me à omissão do Estado nos seus deveres. Mas, hoje, não.

Hoje, os moçambicanos naturalizaram todos esses vícios de decadência ética, social e política, até ao ponto de qualquer tipo de esforços para um tipo de “arrependimento ético e social” caírem por terra. Quem, em Moçambique, líder em qualquer esfera, tem moral suficiente para mobilizar demais pessoas para mudanças de mentalidade, para transformações que nos levem a riqueza de vida ética, ainda que comecemos com pequenos pensamentos e gestos. Será que os nossos pais e mães cumpriram os papéis de pais diante de filhos? Afinal, o que é uma família? O que é um pai? O que é uma mãe? O que são filhos? Não quero, aqui, respostas biológicas. Tenho fartura delas. Não basta alguém ser filho biológico para ser filho. O papel socializador e educador do pai e da mãe conta mais do que a ligação biológico-umbilical.
O adultério e a desestruturação familiar naturalizaram-se, até ao ponto de termos pais que, por possuírem filhos ali e acolá, em cada fim de mês dispersam o irrisório salário em suas duas ou três “famílias”, conhecidas ou não. Será que os pais adúlteros já fizeram contas dos custos éticos, sociais e financeiros do adultério? Por que não investir tempo e recursos em uma e única família? Legitimou-se que “sexta-feira”, à (alta) noite, “é dia do homem”, como ironicamente afirma a letra de música de Rosália Boa ou Rosiana Jaime, no sentido de que ele é livre de estar ausente na sua família. Deveria ser o contrário, uma vez que trabalhou toda a semana. O país é paupérrimo no Índice de Desenvolvimento Humano Global. Mas, sua maior miséria está nos bojos espirituais e éticos dos seus habitantes (aliás, já escrevi que os moçambicanos são mais habitantes do que cidadãos. Aqui, quem é cidadão conta-se a dedo). Precisamos rediscutir o que é família e regras de sua funcionalidade. Quem é quem na ética familiar em Moçambique? Se de um lado, temos homens que violam verbal, emocional e fisicamente as suas esposas e filhos (as), de outro lado, temos ativistas de direitos das mulheres, cujas soluções vão contra a reestruturação ética da família. Será que os solavancos de vida em Moçambique não nos empurraram ao resvalo da bizarrice ética? Parece-me que todos caímos no resvalo da decadência ética e social, salvos raras e honrosas excepções.

Elites governamentais e cívicas
Realmente, o entupimento ético moçambicano tem várias ângulos sobre os quais pode ser observado. Reparem que, no começo da década de 80, o primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, reconhecia vícios de decadência ética e social, a saber: “corrupção material, moral e ideológica, suborno, busca de conforto, cunhas nepotismo, isto é, os favores na base de amizade e em particular das preferências nos empregos aos seus familiares, amigos ou à gente de sua região”, como um sistema a destruir. Aliás, a elite política monopartidária moçambicana de toda a década de 80 discutia estes assuntos na antiga Assembléia Popular e nos demais fóruns (in)formais.

Nos finais da década 70 até primeiros anos da década de 80, o ex-professor universitário e jornalista Aquino de Bragança, já tinha identificado o que apelidou de desmoronamento moral e silencioso do partido governamental. Os exemplos de entupimento ético, lá, ali e acolá, são múltiplos. Em plena segunda República, um exemplo flagrante, de 2004, - é o caso referente às bolsas de estudo alegadamente destinadas aos funcionários do Ministério da Educação, que foram desviadas para os familiares do ex-ministro da Educação e ex-membro da Comissão Política do partido Frelimo, Alcido Ngwenha. Este episódio, num país de ética pública deveria ter conhecido, no mínimo, medidas correctivas ou disciplinares, senão mesmo uma exoneração.

Entretanto, além de Samora Machel ter apresentado publicamente a sua indignação ao entupimento ético, lembro-me muito bem de que, no ano 2001, surgiu a organização não-governamental (ong) chamada Ética Moçambique. (Parece que esta semente cívica não germinou! Bom, pelo menos, aqui, é natural o surgimento de fenómenos moribundos e projectos provinciano-dolarizados). A sua missão, de acordo com informações disponíveis no seu Estudo sobre Corrupção em Moçambique (2001), “seria promover e fortalecer a integridade, a transparência, a probidade e o interesse público, através da defesa de valores éticos”. Num dos pontos do documento, a Ética Moçambique reconhece a “desagregação e debilitação da família no seu papel de primeiro grupo socializador e educador no campo da ética e da moral; impunidade quase generalizada de condutas anti-sociais”. Outra preocupação tem a ver com a “acelerada degradação da moral, da ética e da deontologia que ocorre actualmente na governação, nas suas várias esferas, e na sociedade, em geral, com implicações negativas muito sérias no funcionamento das instituições, na prestação de serviços públicos, na gestão da coisa pública, na produção da riqueza, no desenvolvimento dos negócios, enfim, em todos os domínios da vida do Estado e da nação”.

Teria sido muito mais efectivo se, por exemplo, os membros fundadores da Ética Moçambique tivessem antes reconhecido publicamente o seu entupimento ético e individual nas suas próprias esferas pequenas, sociais e profissionais, antes de qualquer discurso eticizante. Posso, sem medo de errar, afirmar que a Ética Moçambique nasceu na vala eticamente entupida. Será que os membros fundadores da Ética Moçambique tinham “dado um fora” ao deus do entupimento ético?

Ainda na mesma linha, quero pensar que a Ética Moçambique não foi longe não só porque existe, no País, uma cultura de empobrecimento e abafamento das instituições e pessoas que aspiram mudanças sociais e políticas no Estado e na sociedade, mas porque provavelmente parte dos seus membros fundadores padecesse de entupimento ético: vícios de improbidade e intransparência institucional, prepotência, preferência nos empregos na base de aproximação familiar ou de amizade. Se apontar que estes comportamentos de nossas figuras públicas e pessoas singulares deslegitimam toda a ambição de “regresso à sanidade ética”, estarei, no mínimo, a dizer o óbvio.

Propostas nas entrelinhas
Se concordamos que estamos diante de entupimento ético estrutural, então, precisamos de avançar para o arrependimento ético estrutural. Arrependimento, nos moldes do grego falado no primeiro século, é mudança de mentalidade, uma idéia relativa a virar-se contra as mazelas espirituais e éticas nas quais o Homem se encontra. É urgente. Quem está disposto? Notem que, aqui, não estou a actualizar-vos sobre coisas do gosto dos símplices, à moda estomacal como, por exemplo, o doador que esteja a distribuir dólares ou euros para os projectos da nossa bizarrice provinciana. Estou a convidar-vos, todos, a dar a mão à palmatória, reconhecendo que verdadeiramente temos sido construtores da bizarrice ética e criadores do entupimento ético... Estou a convidar-vos a adorarmos ao deus da sanidade ética, em detrimento do deus do entupimento ético.

Maputo, férias de janeiro-fevereiro de 2012

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

De volta ao Bantulândia

Caros leitores,

Faço quase dois anos sem publicar, aqui. O exílio teológico não me permitia ter vagar... Apesar disso, voltei – e estou aqui. Animado... Vamos debater. Estou a preparar um texto sobre “entupimento ético e exaustão social” em Moçambique... Até breve...

Josué Bila

Maputo, férias de janeiro de 2012