Josué Bila*
Os Estados Unidos da América relataram recentemente sobre a situação dos direitos humanos em Moçambique, ajudando aos cidadãos e instituições da sociedade moçambicana a disporem de informações que o governo de Moçambique dificilmente pode dar. Ademais, não há sombra de dúvidas de que o relatório arrolou realidades objectivamente factuais. Porém, sem tirar o mérito que o documento dispõe, algumas das violações de direitos humanos protagonizadas, dentro e fora, pelo país estadunidense mandam dizer que não tem moral e ética suficientes para emitir um posicionamento sobre direitos humanos, particularmente em Moçambique. Não se trata de negar a realidade reportada e nem de “ódio ao imperador”.Trata-se apenas de auto-defesa contra prevaricadores e arrogantes que, ontem e hoje, cooperam, sem cessar, para a continuidade de nossa nudez social...
Alguns pedaços da história
No espaço onde Moçambique se localiza, à semelhança das ex-colónias africanas, asiáticas e americanas que sofreram a macabra dominação colonial, foi fundado um movimento anti-colonialista chamado Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), a 25 de Junho de 1962.
A FRELIMO, para fazer face ao colonialismo português com vista ao alcance da independência do país, procurou apoio no mundo ocidental, nomeadamente EUA e alguns países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Contudo, o seu pedido foi rejeitado, porque os dois estiveram do lado do colonizador, Portugal.
Após essa tentativa frustrada, segundo notas do jornalista inglês Joseph Hanlon no seu livro "Moçambique: paz sem benefícios", a FRELIMO viu-se forçada, na década de ‘60, a virar-se para a antiga União Soviética e a China em busca de apoio.
Logo à partida, os EUA revelaram à FRELIMO, a Moçambique e ao mundo que negam a autodeterminação de alguns países. Seus interesses, por mais manifestamente desumanos que sejam, pesam sobre os objectivos político-morais de uns na luta pelos seus legítimos direitos.
Como se isso não bastasse, Hanlon, baseado em Moçambique durante muito tempo, lembra, no mesmo livro, que, quando Ronald Reagan é eleito presidente dos EUA, em 1980, "tornou imediatamente claro que não ia haver nenhuma transferência de riqueza dos ricos para os pobres".
Algumas agravantes daí decorrentes indicam que "em 1981, houve uma brusca subida de
taxas de juro" que "acelerou a saída de capitais provenientes de África para pagar a dívida crescente aos EUA".
Tanto a posição inicial norte-americana de negar apoio à FRELIMO para a autodeterminação do povo moçambicano, bem como a declaração de Reagan são, sem reservas, uma clara violação de direitos humanos. A declaração de não transferência de riqueza é um sinal bem claro de falta de uma atitude ética de distribuição da riqueza internacional para populações oprimidas e excluídas.
Como se esse esforço de prejudicar Moçambique não bastasse, nos anos seguintes, a administração Reagan encorajou o apoio à Resistência Nacional de Moçambique - RENAMO (um grupo militar que em nome da implantação da democracia multipartidária em Moçambique matou vidas humanas, desestruturou famílias, destruiu infra-estruturas econômicas, sociais, culturais e não só) através do
ex-regime minoritário da África do Sul, o Apartheid, e a algumas pessoas e grupos privados nos EUA. Todas estas gincanas revelam, repetimos, uma clara violação de direitos humanos.
Numa guerra violenta travada em solo moçambicano durante 16 anos (1977-1992), na qual os EUA tiveram uma declarada culpa política e moral, dados do governo de Moçambique indicam que cerca de um milhão de pessoas perdeu a vida. Outros números indicam que a guerra fez cerca de cinco milhões e um milhão e meio de deslocados dentro e fora do país, respectivamente. Em termos de infra-estruturas sociais e económicas, num total de 5886 escolas, foram destruídas 3498, o equivalente a 60 por cento.
A RENAMO, sob apoio declarado do ocidente, conhecendo o projecto do governo da FRELIMO, não poupou essas duas áreas fundamentais de direitos humanos - educação e saúde. Dados oficiais
confirmam que, até 1975, a RENAMO tinha destruído 500 postos de Saúde, num total de 1195.
Os efeitos da guerra foram tão destrutivos até ao ponto de 28 por cento da rede viária encontrar-se profundamente degradada, oferecendo segundo dados governamentais, vias classificadas de intransitáveis. Outra informação calcula que cerca de 35 por cento de estradas estava degradado, oferecendo a possibilidade de trânsito em condições difíceis, para além de que a ponte sobre o rio Zambeze, elo de ligação Norte-Sul, ter sido destruída. Há volumosas informações sobre o assunto, mas por já, ficamos aqui.
Dados comparativos sobre quem viola o quê
Tal como apontamos acima, o relatório norte americano traz dados objectivamente factuais, razão pela qual é digno de ser “aplaudido”. Contudo, as seguintes informações confirmarão o quão violador dos direitos humanos é o país de Jorge Bush, comparativamente ao de Armando Guebuza, em algumas áreas.
O Departamento de Estado norte-americano, apoiando-se em dados do relatório da Liga Moçambicana de Direitos Humanos (LDH) 2003, diz que a Polícia da República de Moçambique (PRM) continua a manter "esquadrões de morte" que são responsáveis por execuções sumárias, acções essas que são protagonizadas na praia da Costa do Sol em Maputo-cidade e em duas zonas da província de Maputo, a saber, Matola e Boane.
Em 2003, enquanto a LDH apresentava o seu relatório, a Amnistia Internacional (AI) registrava 65 pessoas executadas nos EUA, elevando para 885 o numero total de presos executados, desde que o Supremo Tribunal Americano suspendeu uma moratória das execuções, em 1976.
A AI relata ainda que os EUA continuam a violar direitos humanos na forma como usam a Pena de Morte, nomeadamente ao executar cidadãos com menos de 18 anos de idade à altura do crime. O Texas, ainda de acordo com informações daquela organização internacional de defesa dos direitos humanos, foi responsável por 24 execuções ocorridas nos EUA, em 2003.
O extenso relatório dos EUA diz que na Cadeia de Máxima Segurança da Beira, no centro de Moçambique, os guardas prisionais assassinaram quatro presos, a saber, Mjdane Pedro, Tom Daimone, Thima Machava e Faustino Silva. O primeiro foi baleado mortalmente por supostamente ter sido encontrado a evadir-se do presídio e os restantes por desobediência às autoridades prisionais.
Contrabalanceando os números. Nos Estados de Georgia e Texas, as autoridades executaram dois cidadãos (Willie Brown e James Colburn) que tinham longos antecedentes de doenças mentais, incluíndo diagnósticos de esquizofrenia. A AI vai mais longe ao registrar a morte macabra de Scott Hain, a 3 de Abril de 2003, em Oklahama, por um crime que tinha cometido quando tinha 17 anos. Esta sentença de morte foi considerada de injusta em muitos círculos sociais norte-americanos.
Há ainda violação da Convenção de Viena sobre Relações Consulares das Nações Unidas, que exige que os Estados informem os cidadãos estrangeiros do direito de assistência consular na altura de detenção. O relatório da AI relata que os EUA, numa dada altura, negaram o direito de assistência consular a 100 estrangeiros. Violou, assim, o princípio dezasseis, ponto segundo, da Resolução 43/173, adoptado pela Assembléia Geral das Nações Unidas a 9 de Dezembro de 1988, vulgarmente conhecido por Conjunto de Princípios para a Protecção de todas as Pessoas Sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão.
O relatório dos EUA sobre Moçambique expõe, por outro lado, a violação do Código do Processo Penal, por o prazo que vai da detenção, passando pela acusação e indo desembocar ao julgamento ser constantemente excedido, fazendo com que muitos detidos permaneçam períodos longos nas cadeias, antes de comparecerem ao Juiz.
Subindo novamente para o país de Bush: O que sucedeu nos EUA depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 demonstra que é, de facto, no melhor(!?) pano onde cai a nodoa. Porquê? AI regista que, por causa do 11 de Setembro, centenas de cidadãos pertencentes a 40 países foram detidos por tempo indefinido, sem acusação, julgamento ou acesso a familiares e advogados, na base naval americana em Guantánamo, em Cuba, por alegadamente estarem ligados com a Al-Qaeda.
A luta contra o terrorismo levou a que crianças com cerca de 13 anos de idade fossem igualmente detidas com todos os prejuízos psico-morais advenientes desse procedimento anti-direitos humanos. "Durante o ano de 2003, continuaram a aumentar preocupações relativamente ao impacto psíquico do regime de isolamento e de detenção indefinida nos detidos do Guantánamo, tanto nos adultos como nas crianças", reporta AI.
Em relação a esta violação flagrante de direitos inalienáveis das pessoas, a Cruz Vermelha Internacional também denunciou publicamente, em todo o mundo, aquelas atitudes.
Tentando finalizar
Meu objectivo, ao escrever este texto, está dissociado de um nacionalismo estéril, que nega qualquer realidade de violação de direitos humanos reportada por um país estrangeiro - EUA. Até porque Moçambique e os moçambicanos fazem parte da sociedade cosmopolita, e qualquer violação interna de direitos humanos fere a consciência da humanidade, porque os moçambicanos, de um lado, e direitos humanos, de outro, não são assuntos exclusivos de nenhuma jurisdição nacional.
Porém, os moçambicanos e Moçambique desgostam de cinismo e arrogância dos EUA, quando discursa e manda recados sobre direitos humanos, com viés ideológico para perpetuar seus interesses.
*O original deste artigo publiquei-o no extinto jornal Embondeiro.
Maputo. Jornal Embondeiro, 30 de Marco de 2005, pags 4-5
O blogojornalismo pró-direitos humanos é a ferramenta prática que encontrei para debater direitos humanos; interpelar e vigiar as autoridades estatais, especialmente no que diz respeito ao cumprimento do direito (inter)nacional dos direitos humanos e na implementação das políticas públicas e trazer reflexão contextualizada sobre Moçambique. Começo este ano, 2014, a debater direitos humanos, a partir de uma perspectiva dos africanos bantu. A isso chamo de direitos bantu-cosmopolitas...
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