domingo, 16 de fevereiro de 2014

Há direitos humanos nas instituições ancestrais etno-bantu?


O modelo normativo dos direitos humanos e sua consequente actuação, em Moçambique e África, é fruto de imposições das agendas euro-americanas. Em meio aos perniciosos dólares e debates provinciano-estomacais pouco se questiona se o modelo euro-americano levará Moçambique à maturidade de debates e propostas afro-moçambicanas. As representações diplomáticas, o poder público e organizações de direitos humanos fingem desconhecer que a tradição das etnias bantu é
rica em direitos humanos. Se somente fosse fingimento, ao menos. Há, sim, conspiração desestabilizadora. Por que para se defender a liberdade de expressão recorre-se aos modelos euro-americanos? Qual é o lugar, por exemplo, do huvu ou n’bandhla (entendido, aqui, como instituição política e judicial e ao mesmo tempo espaço de liberdade de expressão), no debate sobre direitos humanos? Quando debateremos e legislaremos, por exemplo, uma lei do direito do consumidor a partir de pressupostos das instituições ancestrais do poder público e de direitos humanos e não apenas a partir de um “modelo do direito euro-americano”?

Josué Bila*

Como jornalista e pensador incipiente em direitos humanos, tenho constatado que, em um pouco mais de duas décadas, os direitos humanos se transformaram, em Moçambique, em uma linguagem da esfera pública, amplamente difundida pelas representações diplomáticas e instituições doadoras euro-americanas, organizações não governamentais de defesa de direitos humanos e poder público, em resposta à nova ordem jurídico-constitucional de 1990 e paralelamente às exigências pretensamente universalistas de direitos humanos. Em decorrência disso, a cosmovisão dos direitos humanos tem sido ligada apenas aos paradigmas euro-americanos.

Ao que tudo indica, é como se as sociedades da ancestralidade etno-bantu e suas instituições políticas, judiciais e sociais, em suas ricas cosmovisões, não tivessem paradigmas humanas e políticas, associadas aos direitos humanos. Quero, por isso, adiantar que a estrutura das instituições da ancestralidade dos nossos “Estados étnicos” exprime a existência de modelos de direitos humanos, dentro da política e direito consuetudinários, a exemplo do direito humano do consumidor, do direito humano à justiça e debate de assuntos sociais da comunidade, através do huvu (HENRI JUNOD, Tomo I, 1996) e o direito à autodeterminação (UPENDRA BAXI, 2007).

HUVU – UM DIREITO E INSTITUIÇÃO POLÍTICA E JUDICIAL

Em virtude de minha delimitação, defino a instituição huvu, suas características e relevância social, bem como as possibilidades de sua restauração em ligação com os valores de direitos humanos. Sei que, em rigor dos academicistas, posso estar a incorrer ao erro de comparar valores de direitos humanos “industrializados” no Ocidente com os valores ancestrais da política, justiça, economia, relações diplomáticas do antigo funcionamento dos nossos reinos e impérios. Porém, uso a suposta comparação como um mecanismo argumentativo para expor que os antigos reinos e impérios, esmagados no período colonial, tinham valores que se identificam com direitos humanos e dignidade humana, não precisando Moçambique, por assim dizer, de cegamente importar modelos que nada tem que ver com a sua História e vida em sociedade.

Começo, então pelo huvu. Afinal, que é huvu? De acordo com dados etnográficos de Henri Junod, huvu ( hubweni) ou bandha é, dentre várias descrições, a parte da frente da povoação onde se localiza uma praça pública, com grandes árvores. Geralmente reúnem-se homens de boa vontade que, de manhã, vêm cortejar o chefe. Sentam-se por grupos e comunicam as boas novas do dia. Em termos de utilidade pública, o huvu, para o seu funcionamento, tem personagens da corte judicial e político-governamental, chamados de conselheiros (tindhuna), que formam uma espécie de gabinete que auxiliam o chefe no exercício da realeza. Dividem-se em várias categorias: primeiro, os conselheiros principais (letikulu) que são encarregados de discutir e tomar decisões em negócios graves que interessam ao país. (...). Depois, vêm os conselheiros do exército, isto é, os generais (tindhuna ta yimpi) que presidem à batalha (...). Existem também conselheiros destinados a tratar negócios estrangeiros de um país vizinho: formam uma máquina indispensável nas relações diplomáticas... ou matrimoniais dum rei com outro (...). Finalmente, formam outra categoria de conselheiros os indivíduos estabelecidos pelo chefe em todos os pequenos distritos do país para vigiar os súbditos e averiguar as suas desavenças. São eles que devem levar à capital os negócios (timhaka) importantes, as querelas que o dono da povoação não pode organizar, as causas que dependem do tribunal do chefe (JUNOD, 1996, Tomo I, p. 377-378).

Pode-se confirmar a existência deste tipo de instituição entre os Nuer do Sudão (E.E. EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 174) e entre os barotse da Zâmbia ( Max GLUCKMAN, 1973). O diplomata brasileiro Alberto da Costa e Silva (2012, p. 203) também registra a existência desta instituição em sua obra Imagens da África: da Antiguidade até ao século 19.
Se conceber o huvu, como instituição do poder público e lugar de debates e resolução de assuntos sociais, políticos, diplomáticos e jurídicos da comunidade ou sociedade, posso, então, propor que nosso sistema de modelo legislativo, político, judicial e diplomático deveria seguir o huvu, por este corresponder parte das suas entranhas históricas etno-bantu de fazer política, justiça e inclusão social. É óbvio que estou em pleno Século 21. Por isso, Moçambique atual poderia reconfigurar esta instituição aos moldes actuais, para responder aos seus desafios presentes. Precisaríamos corresponder, por exemplo, o huvu e o direito ao consumidor (abaixo aponto a existência deste direito na tradição dos tsonga do sul de Moçambique) à época actual. Sei que esta minha proposta seja meio controverso para os urbanóides e intelectualóides das capitais, que orgulhosamente se acham cosmopolitas só porque tomam café num restaurante tradicional, como o piri-piri, ou porque formulam suas opiniões a partir das citações das citações ou ainda porque pouco se dispõem em analisar Moçambique, com escrúpulos. Mesmo assim, a questão continua: o modelo euro-americano, adoptado em Moçambique – nacional, provincial e municipal – não tem comprometimento político e social e nem é compreendido por moçambicanos comuns e nem tão pouco os pressupostos desse modelo são entendidos pela elite política e intelectuais, ainda que estes se auto-enganam de o compreender. Este modelo, além de ser pernicioso para a construção do presente e futuro de Moçambique, gasta os pouquíssimos recursos financeiros do nosso erário, para além de que os moçambicanos não se acham representados e nem sabem que debates ocorrem, por exemplo, nos legislativos – municipal, provincial e nacional. Duvido se este modelo esteja a levar Moçambique para um bom porto, aonde os moçambicanos possam ter oportunidades de se realizarem e satisfazerem as suas necessidades.

Pois bem. Partindo do pressuposto de existência da estrutura do huvu e dos direitos humanos, nas sociedades etno-bantu de Moçambique, levanto questões para a reflexão:

1) Qual é a relevância de, antropologicamente, se estudar e de se restaurar a estrutura do poder ancestral do huvu e suas ligações com os valores de direitos humanos para o pensamento e funcionalidade do Estado e governo de Moçambique atual?
2) De que forma as lições da instituição do huvu, defendidas nos idos anos das instituições políticas dos impérios e socialização ancestral, são lembradas pelos defensores de direitos humanos e pelos governantes de Moçambique, nos dias atuais?
3) Qual é o lugar das instituições políticas e sociais da ancestralidade dos nossos impérios e reinos?
A partir destas questões centrais, este trabalho pretende apresentar a relevância política do huvu e sua ligação com os direitos humanos, despertando a sua dinâmica sócio-cultural. É importante, no entanto, deixar claro que este trabalho não se propõe a tratar o huvu em conexão com o conceito de direitos humanos existente na memória coletiva e social moçambicana decorrente dos paradigmas sacralizados da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), da Declaração Americana (1776) e da Constituição da República de Moçambique (1990 e 2004) – este último inaugurador do Estado de Direito Democrático - sobre cujo modelo jurídico os defensores de direitos humanos e os doadores fundamentam o seu debate e defesa de direitos humanos na esfera pública moçambicana, sob inspiração dos olhares e imposições ocidentais. O que estou a propor é inspirarmo-nos no huvu ou hubweni como uma instituição político-governamental, judicial e social ancestral, cujo legado se assenta na gestão política e na observação e respeito de princípios humanos e societários para o bem-estar social e tranquilidade públicas, ligados aos direitos humanos. Proponho que podemos olhar para as instituições políticas euro-americanas e tirar delas o que pode ser útil, mas elas não podem definir nossa vida.

A ANCESTRALIDADE E O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO


Constato que seja ilusório e ideológico que agentes e defensores de direitos humanos esqueçam o papel que os huvu desempenharam na luta pelo direito à autodeterminação dos territórios que formam Moçambique. É, com razão, que E.P. Thompson formula que a celebração entusiasta do Estado de Direito (EDD) euro-americano chega ao ponto de reduzir as lutas contra o colonialismo e imperialismo a um desdobramento último na história humana dos valores liberais codificados pelo EDD (Apud Upendra Baxi, in Revista SUR, número 6. Ano 4, 2007, p.8). Ao mesmo tempo, Upendra Baxi (Revista SUR, Nr. 6, Ano 4, 2007, p.7) acrescenta que até mesmo as histórias insurgentes que geraram um reconhecimento universal do direito humano à autodeterminação e favoreceram os itinerários dos direitos humanos contemporâneos são reconhecidos erroneamente como uma imitação da imaginação histórico-mundial do EDD euro-americano! O fato histórico de que comunidades de resistência e povos em luta não-ocidentais tenham enriquecido as concepções do EDD “abrangente” é simplesmente encoberto pelos mitos persistentes das origens ocidentais.

Entre nós, quem se lembra de que a costura e a edição do direito à autodeterminação encontrado, por exemplo, no Direito Internacional de Direitos Humanos, é fruto de lutas contra o colonialismo europeu? Como observo, o complexo de superioridade cultural ocidental - e admirado mimeticamente pelas esferas acadêmico-intelectuais e comprado pelos perniciosos defensores de direitos humanos - é devastador e pernicioso, por pouco agrupar outros elementos políticos, culturais e tradicionais de direitos humanos, que muito contribuíram para o grande cardápio dos direitos humanos universais.

Mesmo que eu seja crítico aos pressupostos euro-americanos de produção e edição do nosso actual modelo jurídico-constitucional, o preâmbulo da Constituição moçambicana de 2004 é de utilidade excepcional para esta reflexão, ao destacar que a luta armada de libertação nacional, respondendo aos “anseios seculares do nosso povo”, aglutinou todas as camadas patrióticas da sociedade moçambicana num mesmo ideal de liberdade, unidade, justiça e progresso, cujo escopo era libertar a terra e o Homem.

Esta reivindicação (anseios seculares do nosso povo) de justiça social do preâmbulo da Constituição de Moçambique chama à atenção para a compreensão de que o legado de luta pelos direitos humanos em Moçambique, que teve o seu ápice com o início da luta armada de libertação nacional (1964), culminando com a Independência Nacional (1975), é decorrente da procura, pelos ancestrais, de soluções locais para a efetivação dos direitos humanos e justiça, com todos os seus desdobramentos político-administrativos, sociais e econômicos. Posto isto, por que não refletir os direitos humanos sob o legado dos ancestrais e instituições dos nossos impérios/reinos ou mesmo a partir da luta da FRELIMO pela independência?

Quando o preâmbulo da Constituição de 2004 assevera que a luta armada pela justiça, unidade, liberdade e progresso foi travada em resposta aos “anseios seculares” de nações moçambicanas vítimas de uma das piores humilhações da humanidade (a colonização), atraio-me a usar, aqui, o termo justiça. Por assim dizer, prefiro tratar o termo justiça e seus desdobramentos em ligação ou sinônimo de direitos humanos por melhor se coadunar com aquilo que, com a devida ingenuidade intelectual, chamo de hermenêutica etno-bantu de direitos humanos, na tentativa de propor a estrutura do huvu e o pensamento de direitos humanos.

O etnógrafo e missionário suíço Junod descreve que, no vocabulário tsonga, o conceito de justiça significa nawu (pl. milawu) que designa lei ou costume. Kutlhula nawu “saltar por cima da lei” designa a transgressão... Aplica-se em primeiro lugar aos casos que reclamam demanda, mas atribui-se também a toda e qualquer falta. Kuda, “comer alguém”, ou kudela é uma expressão pitoresca empregada para designar um atentado à propriedade (JUNOD, 1996. I Tomo, pp 387-388).

Na estrutura do huvu nas sociedades etno-bantu do espaço onde Moçambique se encontra as noções de justiça e seus desdobramentos podem ser ligados também à luta pela autodeterminação, cuja terra e poder estava nas mãos do colonizador.

Junod descreve ainda que os bantu têm um sentido muito forte da justiça. Acrescenta ainda que os bantu acreditam na ordem social e no cumprimento da lei, que, embora não seja escrita, é universalmente conhecida. A lei é o costume, o que sempre se fez. Os velhos, os conselheiros, e, destes, sobretudo da capital, são os que podem falar com autoridade. Cada um é bem-vindo ao huvu, onde se debatem as questões em cujas discussões mesmo os estrangeiros podem tomar parte. Ninguém é excluído, se fala com bom senso (...) O hábito de assim participarem nas discussões do huvu desenvolve entre os bantu, num grau espantoso, o sentido da lei. Nascem todos advogados e juízes, e é geral o interesse por este tipo de atividade. É por isso que o vocabulário tsonga é rico em termos judiciários (Junod, Op. Cit. 1996, I, p. 387-388).

Estamos ou não perante uma herança histórico-institucional e presença antropológico-ancestral de conceitos ou realidades de liberdade de expressão e direito de participar livremente em reuniões comunitárias e julgamentos de litígios locais? Posto isto, por que vincular a democracia de opinião e liberdade de expressão somente aos conceitos euro-americanos? Moçambique atual pode ou não produzir, editar e aprovar uma Constituição que esteja bem próximo à realidade da cosmovisão ancestral, a partir da proposta da restauração da estrutura institucional bantu-moçambicano do huvu e de direitos humanos? Qual é o papel dos intelectuais e acadêmicos nesta restauração do que chamo de instituição ancestral do (direito do) huvu, direito do consumidor e direito à autodeterminação? Quando, em Abril de 2004 estava ainda a serviço da revista Democracia e Direitos Humanos, pertencente à simultaneamente famosa e (in)útil Liga Moçambicana de Direitos Humanos, entrevistei Lourenço do Rosário sobre a situação da democracia e desenvolvimento, em Moçambique, o qual respondeu que um dos grandes problemas actuais de acadêmicos e intelectuais moçambicanos é que se limitam a receber instruções, indicações e orientações de modelos que, naturalmente, têm pouco que ver com cultura de governação das nações administradas tradicionalmente pela ancestralidade jurídico-legal, política e na organização econômica e social. Uma das soluções, ainda de acordo com Rosário, é que os antropólogos moçambicanos precisam de não depender de teorias exteriores, mas devem produzir teorias que se inspirem na observação e pesquisa interna, para exatamente percebermos qual é a concepção que a maioria do nosso povo tem sobre a democracia (e direitos humanos) e, a partir daí, dar subsídios que pudessem melhorar este modelo de democracia que nos é imposto (Do Rosário, 2007, p. 362).

O que chamo livremente de amnésia histórica e antropológica dos actores políticos, acadêmicos e intelectuais em direitos humanos esmaga os significados e conceitos bantu de direitos humanos, em nome de chavões dolarizados de direitos humanos, pretensamente universais, espalhados pelo Ocidente e pelos seus grupos serventuários encontrados em muitos países, à semelhança de Moçambique. Posso dizer, com muita liberdade, que, salvo raras e honrosas exceções, os cerca de quinze anos de trabalho direto e indireto com as organizações não governamentais de direitos humanos são suficientes para afirmar haver interesse muito mais financeiro com as “defesas” de direitos humanos em Moçambique, para o aburguesamento dos estômagos das lideranças dessas associações, à custa do sofrimento dos privados de direitos: os moçambicanos.

Até aqui parece que estou a conspirar contra “direitos humanos ocidentais”. Nada disso. Em essência, não existem direitos humanos ocidentais e direitos humanos etno-bantu. Existe, isso sim, valores de direitos humanos que são intrínsecos à história, dinâmicas sociais e políticas, econômicas e ideológicas que decorrem em certas nações, em função de sua História. O meu argumento segue a linha de coerência de que se seguíssemos direitos humanos da ancestralidade etno-bantu, por fazerem parte das nossas entranhas históricas e mais conhecidas e vivenciadas pela maioria dos bantu de Moçambique, seríamos capazes de fazer a nossa História e não seguir a História dos outros. Infelizmente, no pensamento governamental, acadêmica, intelectual e organizações governamentais moçambicanas actuais, quando se pensa em termos de direitos humanos, pensa-se nos direitos humanos estruturados dentro da sociedade grega ou, mais recentemente, da estrutura euro-americana, como, por exemplo, o impacto universal da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Americana e Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tudo isto ofusca possíveis presenças de uma estrutura ancestral etno-bantu de direitos humanos, ligado à nossa humanidade, instituições políticas e jurídicas e sociabilidade, em cuja herança se encontra o legado da tradição política da ancestralidade de Moçambique.

Aliás, ao articular uma proposta útil de amplitude do conceito de direitos humanos e da luta contra a opressão, em muitas comunidades do mundo, Mondani Mahmood (no artigo The social basis of constitutionalism in Africa, no Journal of Modern African Studies 28, n.3, 1990, p. 359-360), afirma que (...) nenhum continente teve um monopólio sobre este fenômeno (de direitos humanos), na história, e é necessário que haja uma concepção de direitos. (...) Esta é a razão pela qual é difícil aceitar que direitos humanos constituam uma noção teórica há apenas três séculos pelos filósofos europeus. Realmente, poder-se-ia citar Aristóteles e a sua justificativa ideológica da escravidão como uma evidência de que a idéia de direitos humanos certamente estava alheia à consciência das classes dominantes na Grécia antiga. Por sua vez, o sudanês Abdullahi An-Na’im ( in Cesar Augusto Baldi (org), 2004, p. 435) afirma que todas as sociedades e comunidades humanas podem identificar-se com o conceito (de direitos humanos) e contribuir para a especificação de seu conteúdo normativo, precisamente porque já é parte de sua própria história e de suas experiências atuais. Obviamente o direito à autodeterminação e o direito do consumidor são um deles.

DIREITOS DO CONSUMIDOR BANTU-MOCAMBICANOS

Existem direitos do consumidor na estrutura das nossas instituições ancestrais? A resposta mais óbvia é sim. O direito do consumidor pode ser demonstrado na relação entre o vendedor e o comprador de gado. Em casos em que os contundentes não resolvem, o caso resvala ao chefe que pode convocar o huvu e os seus conselheiros para juntos deliberarem. Vejamos outra vez o que Junod escreve bem relacionado ao que, nos códigos internacionais e nacionais, se designa de direito do consumidor: “Os casos de anulação de vendas estão previstos e se se compra um boi e ele morre com uma doença de que se não deu nota no acto da compra, mas que existia já ao tempo, reconhece-se o direito de exigir outro animal em lugar daquele, apresentando-se a pele do boi morto e uma enxada pela carne que foi consumida. Se o vendedor não atende a reclamação, a queixa é apresentada ao chefe. Este chama o recalcitrante e diz-lhe: ´Este homem não procedeu justamente trazendo uma enxada na pele?´ Dá-lhe outro boi” (JUNOD, Tomo I, 1996, p. 390). Posto isto, posso perguntar: por que o modelo da lei moçambicana do consumidor é de inspiração euro-americana e não das nossas instituições de política e direitos humanos etno-bantu? Bom, o espaço é curto, para continuar. Paro, então, por aqui.

O que posso dizer, resumidamente, antes de concluir, é: 1) A negação institucional governamental e política moçambicana do papel das instituições tradicionais etno-políticas, judiciais, econômico-comerciais e direitos humanos empurra Moçambique ao abismo de dependência de instituições ou modelos de direitos humanos de história e burocracia ocidentais;
2) A existência de institucionalização de vida fácil legitimada pelos dólares ocidentais nas organizações não-governamentais e as imposições dos parceiros e doadores do governo às políticas de democracia, direitos humanos e desenvolvimento, descaracteriza a herança governamental e judicial das instituições dos nossos ancestrais; e
3) A confusão na implementação de direitos humanos e democracia em Moçambique se deve à falta de percepção intelectual e estudos dos pressupostos históricos e antropológicos das origens de direitos humanos e democracia, em contextos ocidentais.

CONCLUSÃO SEM FECHAR
Chegado, aqui, resta repetir o seguinte: a necessidade de valorizar a História dos impérios e reinos e suas ricas instituições (instituição do huvu, do direito à autodeterminação e dos direitos do consumidor, por exemplo) funda-se nas tentativas de reconstruir as teias ancestrais de consciência do poder político e de restauração do pensamento ancestral de direitos humanos, para Moçambique actual, engolido pela tradição Ocidental e pelas trafulhices dos dólares, que só engordam alguns intelectuais provincianos e organizações não-governamentais locais. A questão que fica é: como restaurar valores do poder político da ancestralidade dos reinos e impérios, conciliando-os com as novas dinâmicas e exigências de Moçambique do século vinte e um?

*Publicado no Jornal Magazine Independente (11 de fevereiro de 2014)

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